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Otto Maria Carpeaux

 

Esse monstro ali estava, andando de mesa em mesa, fumando, esperando a reunião


FOI COM pavor que me aproximei de Otto Maria Carpeaux, no início dos anos 60, quando entrei para o "Correio da Manhã", onde fui inaugurar o que então se chamava de "copy desk", e ele era o principal editorialista do jornal.


Já haviam sido publicados os primeiros volumes de sua monumental "História da Literatura Ocidental", eu havia lido a "Cinza do Purgatório, Origens e Fins" e "Livros na Mesa". Considerava o seu prefácio à edição brasileira de "Os Irmãos Karamazov" tão esclarecedor e importante quanto o próprio texto de Dostoiévski.


Esse monstro ali estava, andando de mesa em mesa, fumando sem parar, esperando a reunião das 18h em que se discutiria a linha do editorial e dos tópicos que compunham a página de opinião, a famosa página 6 do velho "Correio".


Pressionados pelo regime político vigente naquela ocasião, pedimos demissão mais ou menos ao mesmo tempo. Sem jornal para escrever, aceitávamos convites de estudantes de diversas universidades espalhadas pelo Brasil e assim formamos uma dupla. Durante três anos fizemos palestras em faculdades, igrejas e clubes recreativos. Impressionante como Carpeaux conseguia, usando um mínimo de palavras, dar o seu recado.


Ao final de cada palestra, havia debates, os estudantes faziam as perguntas, eu respondia com milhões de palavras e não era entendido. Carpeaux pensava um pouco, dizia cinco, seis, dez palavras -e estava tudo ali. Decididamente, um monstro. Nem percebiam o seu folclórico defeito de dicção que, na intimidade, era até escandaloso.


A verba dos estudantes era limitada, em muitas cidades dividíamos o mesmo quarto de hotel. Nunca tive um companheiro mais educado e cortês.


Luz apagada, fumando o último cigarro, eu notava que ele se concentrava antes de dormir. Rezava? Talvez. Sempre suspeitei que Carpeaux tinha um fundo religioso, embora criticasse todas as religiões. Depois, somando outros detalhes de sua personalidade, tentei esboçar uma teoria para explicar esse tipo de concentração a que ele se entregava não apenas na hora de dormir, mas em momentos específicos de seu dia.


Lá no "Correio da Manhã", todos ficávamos intrigados com a mania que ele tinha de pegar um papel e nele colocar nomes e números numa ordem que, aparentemente, parecia uma lista de jogo do bicho.


Feita a lista, olhava em torno para ver se alguém o observava e discretamente jogava o papel rasgado na cesta. Um colega deu-se ao trabalho de apanhar os fragmentos e recompor a lista. Lá estavam, com a sua inconfundível letra gótica, pequenos blocos de cinco ou seis letras e números, coisa esotérica. Todos os dias fazia a mesma coisa.


Quando teve o primeiro enfarte e ficou internado no hospital, ele pedia à dona Helena, sua mulher, que lhe perguntasse determinadas datas e acontecimentos, aleatoriamente, como numa roleta. Nada respondia, mas ficava concentrado, buscando na memória o que lhe fora indagado.


Juntando esses elementos, comecei a perceber (e outros colegas também já tinham chegado à mesma conclusão) de que Carpeaux possuía algum processo mnemônico, aprendido em Cracóvia, em Viena, em Antuérpia, sei lá onde, um macete de "scholar" com o qual, através de chaves e códigos, penetrava em todos os campos do saber humano.


Para ele, era importante saber quantos compassos de uma velha canção medieval foram aproveitados por Wagner na abertura de "Os Mestres Cantores". Como o atleta que dedica momentos de seu dia para esquentar os músculos, ele praticava esse tipo de atletismo mental, pronto para o que desse ou viesse. Daí o meu espanto quando, em 1966, produzindo o documentário "Otto Maria Carpeaux - O Velho e o Novo", dirigido por Maurício Gomes Leite, fomos a seu apartamento na rua Paula Freitas, em Copacabana.


Sua estante de livros era modesta, igual a de um estudante em início de curso superior. Sua discoteca era diminuta. Filho de um advogado que tocava violino, Carpeaux preferia ler partituras. Perguntei-lhe por quê. Ele respondeu que lendo a pauta era mais fácil de guardar do que ouvindo -o que nos remete definitivamente para o imenso universo mental que cultivava com suas chaves enigmáticas e códigos de cabala. Um monstro.


Folha de S. Paulo (SP) 23/11/2007

Folha de S. Paulo (SP), 23/11/2007