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Os velhos comunistas

 

Este 25 de outubro marca o nonagésimo aniversário da Revolução Russa de 1917. Uma data que certamente será evocada em todo o mundo: a Revolução de Outubro, como ficou conhecida (ainda que pelo antigo calendário russo tivesse ocorrido em novembro) marcou o século XX.


O comunismo mobilizou as esperanças da Humanidade como nenhuma ideologia o tinha feito antes. E sua derrocada marcou o início de um período de apatia, de perplexidade, de confusão mesmo, do qual o mundo ainda não conseguiu sair, e que foi, em grande parte, o responsável pelo atual silêncio dos intelectuais.


A Revolução Russa não foi, claro, um episódio único. Antes tinha havido a Revolução Francesa de 1789, com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que, contudo, desembocaram no terror revolucionário, com a guilhotina funcionando em tempo integral. As várias revoluções que ocorreram em 1848 fracassaram, assim como a Comuna de Paris.


Mas a Revolução conduzida por Lênin chegou ao poder. É que, antes de Lênin, houve Karl Marx. E Marx foi decisivo. Por quê? Porque suas bem escritas e acessíveis obras forneciam um esquema perfeito para compreender o mundo.


Deve-se dizer que Marx, pesquisador infatigável, sabia do que estava falando. Seu diagnóstico do capitalismo no século XIX até hoje é válido.


Ele errou no prognóstico e no tratamento que preconizou, mas o destino poupouo do desgosto de constatar esses erros.


Ao contrário do que Marx tinha profetizado, a Revolução ocorreu não num país de capitalismo avançado, mas na atrasada Rússia, devastada pela Primeira Guerra Mundial. Lenin, que, diferentemente de Marx, tinha um faro político admirável, deu-se conta de que aquele era o momento propício para a tomada do poder. O Partido Comunista tomou o poder e, ao tomar o poder, obviamente mudou, porque, como disse Lord Acton, o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta. Isto ficou claro quando Stalin tornou-se o ditador.


A partir daí começou um período comparável ao Terror da Revolução Francesa. Os supostos inimigos do regime eram executados aos milhares ou então enviados para os campos de concentração. Esta luta pelo poder se repetia nos Partidos Comunistas do mundo inteiro, controlados por Moscou.


Mas, apesar de tudo, havia gente que continuava acreditando nos ideais de 1917: os velhos comunistas.


Ah, os velhos comunistas. Está aí um grupo humano que merecia um estudo especial. Ao contrário do que se poderia pensar, nem sempre eram operários; muita gente de classe média e mesmo de origem aristocrática integrava o Partido, inclusive no Brasil.


Era gente, em primeiro lugar, disciplinada.


Partilhavam uma mesma visão de mundo baseada em duas categorias: o progressista e o reacionário.


A luta entre ambos era feroz e contínua e terminaria com a Batalha Final, da qual falava o hino da Internacional Comunista, que depois do apelo inicial — “De pé, ó vítimas da fome” — conclamava: “Bem unidos façamos/ nesta luta final/ uma terra sem amos/ A Internacional.” Mas, até a Batalha Final, havia muito chão a percorrer, muitas mini-batalhas a enfrentar, e este era o problema. A cada momento era preciso decidir o que era o certo e o errado, o que era progressista e reacionário, uma avaliação complicada pelo pensamento dialético, segundo o qual toda coisa contém em si o seu contrário.


Assim, a verdade, que é uma coisa boa, poderia ser reacionária; e uma mentira, que é coisa ruim, poderia ser progressista.


Mas havia quem pensasse pelos militantes: o Partido, naturalmente, com seu Comitê Central, seu Secretário Geral, mas, acima de todos, o Comintern, que comandava os comunistas desde a União Soviética.


Num certo momento, o Comintern decidiu que, no Brasil, a Batalha Final seria travada entre índios e brancos e enviou aos comunistas brasileiros ordens neste sentido. Os militantes iam para a Cinelândia, no centro do Rio, e do alto de um caixote, conclamavam, para espanto dos cariocas que ali estavam: “Índios! Rebelai-vos!”


Se por acaso as orientações suscitavam dúvidas, sempre havia a famosa sessão de crítica e autocrítica, na qual o camarada acusava a si próprio de desvios burgueses, sendo devidamente malhado pelos companheiros. E as acusações poderiam ser as mais variadas. Um comuna uma vez me contou que, em sua célula, um companheiro operário acusara-o de burguês porque ele jogava um jogo que tinha reis, rainhas e bispos: o xadrez.


O velho comunista era um sofredor. Cada nova notícia era sempre uma notícia desnorteante. A União Soviética fez um pacto com os nazistas.


Tanques russos invadem a Hungria. Kruschev denuncia crimes de Stalin. A primeira reação era de incredulidade: não, não pode ser, isto é mentira da imprensa burguesa.


Quando a notícia se confirmava vinha a explicação (boa parte do tempo dos comunistas era usada nisto, na busca de explicações). O pacto com os nazistas foi só uma maneira de ganhar tempo. A invasão da Hungria era necessária para salvar o comunismo.


Mas estas reviravoltas tinham um alto preço emocional. O velho comunista era sempre angustiado.


As rugas da melancolia marcavam sua testa. A maioria dos velhos comunistas que conheci não viveu para ver a derrocada dos ideais. Deus foi misericordioso com eles. Pena que Deus, naturalmente, não existe.


O Globo (RJ) 20/10/2007

O Globo (RJ), 20/10/2007