A Receita Federal decidiu apertar o cerco contra fraudes em deduções do Imposto de Renda (IR) praticadas sobretudo pela classe média. "Para ampliar o limite de dedução com saúde, educação e dependentes, são inseridos filhos fictícios, tornando-se comuns declarações que mencionam filhos gêmeos e trigêmeos", informa relatório de inteligência do fisco ao qual a Folha teve acesso.
Quando ele recebeu a notificação da Receita, convocando-o para dar esclarecimentos quase teve uma parada cardíaca. Sabia exatamente do que se tratava.
Num esforço para conseguir uma redução do imposto, declarara-se pai de três filhos. Trigêmeos: o dado era importante, porque tinha apenas um ano e meio de casado. Trigêmeos não são tão raros, e ele achou que a informação seria aceita sem contestação. A notificação mostrava que isso não acontecera.
E agora? Como enfrentar a ameaça? Uma possibilidade seria arranjar emprestado trigêmeos de poucos meses e levá-los à Receita. Mas, para começar, ele não conhecia ninguém que tivesse trigêmeos. Além disso, sempre havia a possibilidade de que algum funcionário mais zeloso exigisse um exame do DNA que comprovaria a fraude.
Não, o melhor seria ir sem bebê algum. O melhor seria arranjar uma foto -até na internet poderia obtê-la- e, usando essa foto, falar sobre as três crianças, falar muito, como pais orgulhosos costumam falar sobre seus filhos.
Para isso precisaria da ajuda da mulher, que tinha mais sensibilidade, mais imaginação, mais intuição.
Contou o que tinha acontecido, recebeu a inevitável recriminação ("Eu disse a você que não mentisse, que a mentira tem pernas curtas"), mas, companheira que era, ela dispôs-se a ajudá-lo. Ficaram horas imaginando os trigêmeos, àquela altura com um ano e dois meses. Meninos, de acordo com o pedido dele.
Mas foi ela quem deu os nomes: Eduardo (Dudu), Luís (Lulu), Fernando (Nando). Eduardo era o mais velho, e também o mais travesso. Lulu tinha um sorriso encantador, Nando era de uma inteligência surpreendente. Inventaram várias aventuras, contaram como os garotos brigavam pela mamadeira.
Falariam também das noites em claro, das doenças que os bebês haviam tido, uma delas levando à hospitalização dos três. Um transe difícil que eles, no entanto, haviam superado. Lá pelas tantas ele percebeu que as lágrimas corriam pelo rosto dela. E não lhe era difícil adivinhar a razão.
Não tinham filhos. Motivo: grana curta. Ele era sócio de uma pequena empresa que estava sempre à beira da falência. Ela trabalhava como balconista numa loja e ganhava pouco. Filhos? Só quando a situação melhorasse, dizia ele, categórico. Isso, constatava-o agora, dolorosamente, tinha seu preço. A Receita jamais o chamaria para saber por que não tinha filhos; mas que a consciência lhe pesava, ah, pesava, e muito.
Foi à Receita. Não, o problema não era com os trigêmeos, era um pequeno erro na declaração. Mas ele estava disposto a corrigir todos os erros de sua vida. Admitiu que não era pai de trigêmeos, ofereceu-se para fazer uma retificação. E saiu dali feliz. Breve ele se tornaria pai.
Folha de S. Paulo, 12/10/2009