Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Os que estão indo

Os que estão indo

 

Segmento de meu romance Deus, Diga Logo o Que Quer!, que segue na linha do filme de Tais Araújo e Lázaro Ramos e que acabei de entregar à editora: 'Venha Neluce, corra ou vai perder. Venha logo! Está acabando. Não disse, meu amor, eles se foram. Os últimos negros do país. Para onde estão indo? Lembra-se como o Desatinado (seu nome é impronun-ciável) reclamava? 'Não há como enterrar brancos, imaginem esses estranhos.' Ele quer uma nação de brancos, loiros e ruivos, de olhos azuis, saudáveis, bem armados. 'Como um miserável vai segurar o fuzil? O coice acaba com ele!', grita do seu cercadinho. Passaram por aqui aos milhares, não sei para onde vão. Gostam de dançar, beber cachaça, sambar. Trabalhar? Nada. Neluce. Você precisa sair desse quarto, meu amor. A vida acabou para você? Não tem interesse em nada? Onde está a minha Neluce?

À medida que foram desaparecendo as populações das comunidades, dizimadas por uma nova teoria, chamada Nada Está Acontecendo, com ninguém sendo vacinado por falta dos insumos, os habitantes que sobraram foram se amontoando em tendas, em acampamentos de sem-teto, sem auxílio fiscal, de refugiados da Ucrânia. Ali se fundiam às cra-colândias, que crescem 'desmesuradamente', tanto prevarica essa gente, como disse o ministro do Bem-Estar Social.

Tinham vacinado - garantiram - primeiro os indígenas, que por viverem longe, assegurava-se, sobreviveríam. Morreram todos, os garimpeiros se apossaram de suas terras. Agora miseráveis e como tem miserável neste país!, disse o ministro da Economia. Era tão bom quando essa gente não era vista, nem se sabia dela! Aliás, os sociólogos - vade retro - chamavam esses grupos de os invisíveis. Por anos conseguimos matar a fome deles, dizia ainda o ministro da Economia, lhes dando os restos de comida dos restaurantes e hotéis. Restos não só das cozinhas, mas também dos pratos, afinal os miseráveis não estavam vendo e agradeciam, assim como agradeciam os alimentos vencidos dos supermercados. Foi uma ação generosa do governo e de particulares. Todo garçom, maítre, voluntário recolhe sobras dos pratos e panelas para enviar àqueles que um filho do Desatinado - o que nos governa -denominou Turbas Esfomeadas Que Denigrem o País.

Chegou a vez dos negros, encaminhados à vacinação com vacinas vencidas ou com água sanitária nas seringas, o que provocava enjoos, convulsões estomacais, até a pessoa se desfazer em vômitos que escorriam nas sarjetas'. ?

O Estado de S. Paulo , 17/04/2022