O cientista social Fábio Kerche, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), publica no novo número da revista Insight Inteligência um interessante artigo analisando as semelhanças entre o sistema de justiça brasileiro e o dos Estados Unidos que levam ao incentivo de um procurador-geral da República mais condescendente, como temos hoje Augusto Aras, e processo semelhante que aconteceu nos Estados Unidos com relação ao promotor responsável por acusar o presidente de lá.
Em ambos os casos, ressalvando as profundas diferenças entre os modelos, Fabio Kerche constata que os políticos, da situação e da oposição, apoiaram que o promotor encarregado de processar os presidentes tivesse menos autonomia do que em outros momentos da história recente desses países. “Altas doses de autonomia parecem ser um risco que os políticos nem sempre estão dispostos a apostar”, ressalta.
Se nos Estados Unidos o divisor de águas para a aprovação de mais autonomia para o promotor ad hoc foi Watergate, diz ele, para a limitação dessa independência, pouco mais de 20 anos depois, foi o escândalo Monica Lewinsky durante o governo de Bill Clinton, que chegou a resultar na aprovação do impeachment do presidente na Câmara dos deputados, revertida no Senado.
No Brasil, o ponto de inflexão foi a escolha do procurador-geral da República de uma lista tríplice feita em votação no Ministério Público. Nos governos petistas, essa prática foi adotada, e também no de Temer, resultando em procuradores mais dependentes de seus próprios pares do que do Executivo. Basta ver a atuação dos procuradores-gerais nos governos petistas durante o mensalão. No governo de Bolsonaro, assim como no de Fernando Henrique, que definiu Geraldo Brindeiro como uma “escolha técnica”, Augusto Aras foi escolhido fora da lista tríplice.
O pressuposto da democracia de que a oposição de hoje pode ser o governo de amanhã, analisa Fabio Kerche, gera incentivos de restringir a autonomia daqueles que poderiam desestabilizar o governo, numa espécie de “seguro político reverso”. Em outras palavras, : um promotor independente acusando o presidente, do ponto de vista da oposição, pode ser vantajoso a curto prazo. A questão é que quando a oposição ganhar as eleições, ela também pode ter um promotor independente acusando e cobrando o presidente apoiado por eles.
Embora as diferenças nos sistemas de justiça dos Estados Unidos e do Brasil sejam significativas, o cientista social Fabio Kerche diz que é possível comparar o poder de acusar judicialmente o presidente nas mãos da PGR e do promotor independente. “Nos dois países, decisões politicas tomadas em momentos específicos reforçaram a autonomia desses atores. O independent counsel, função criada após o escândalo do Watergate, e o procurador-geral da Republica durante as gestões do PT, se assemelham em algum sentido. Ambos são encarregados de processar o presidente e foram protegidos institucionalmente da interferência do Executivo, sendo passíveis de demissão sob circunstâncias extraordinárias”.
As consequências dessa experiência institucional também se assemelham, analisa Fabio Kerche. Nos dois países, os políticos parecem ter entendido que o custo político de manter um promotor incontrolável supera os benefícios. Esse entendimento não se restringe apenas às partes que apoiam o governo. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil- mais explicitamente no primeiro que no segundo - os políticos de diferentes colorações partidárias, da situação e da oposição, abriram mão do modelo que previa um promotor autônomo com poder de acusar o presidente, os ministros e membros do parlamento. Assim como o promotor independente dos Estados Unidos depois do escândalo politico do governo Clinton, o Brasil também reduziu o grau de independência do PGR depois dos escândalos políticos nas administrações petistas. “Tanto aqui como lá, essa decisão foi fruto de um cálculo politico racional que uniu políticos de diferentes partidos. Ninguém gosta de ser controlado”, conclui Fabio Kerche na revista Insight Inteligência. Kerche não aborda, mas o mesmo acontece com a união política suprapartidária contra a Lava-Jato e o ex-juiz Sérgio Moro.