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Os guardiões do Estado

 

Pelo jeito que a coisa anda, em 2022, os políticos vão nos obrigar a, mais uma vez, ter que escolher entre o autoritarismo populista de direita e o populismo autoritário de esquerda. Ou vice-versa, tanto faz. Nossa permanente e pobre alternativa eleitoral vai mais uma vez se impor, sem que possamos respirar um pouco.

Depois das eleições, eleito um dos dois lados, o outro dirá que, se estivesse lá, faria diferente e melhor, o que dará motivos e expectativas para as próximas disputas. A democracia só é boa quando justifica os erros de quem governa e dá esperança a quem pretende um dia governar. Podemos concluir que é esse o principal gatilho dela, o que a mantém acesa em nossos corações. Não podemos pensar em destruir o que seremos amanhã.

Mas é preciso também acreditar no rigor democrático, na Constituição e nas leis civis, bem como nas regras morais que não estão escritas, mas que governam as sociedades em que a democracia nasceu e floresceu. Sem esses limites, a democracia não sobrevive, as sociedades que ela pretende organizar se tornam uma selvagem e desumana experiência, em que o justo e o correto estarão sempre dependendo do bem-estar de quem se encontra no eventual poder.

Quando, depois de seu bem-sucedido primeiro mandato, em que deu a partida ao fim da Depressão, o presidente Franklin Roosevelt, eleito para um segundo termo por mais de 60% dos americanos, tentou mudar a composição da Suprema Corte do país, sofreu derrota clamorosa, comandada por representantes dos dois partidos, por políticos de todas as tendências, pela imprensa em geral e pelos eleitores que o haviam sufragado recentemente. E a alteração na Suprema Corte não aconteceu.

Curiosamente (ou, talvez, naturalmente), todo movimento autoritário que pretende acabar com as liberdades democráticas e impor um regime de força começa tentando silenciar os responsáveis pelas leis. Hugo Chávez é um dos exemplos mais recentes desse comportamento, sua ação acabou provocando a imposição de um outro regime político específico na Venezuela, nada democrático. Como no caso de Chávez, do húngaro Viktor Órban, do bielorusso Alexander Lukashenko, do italiano Matteo Salvini e de outros autoritários contemporâneos, essas não são mais as clássicas intervenções militares do século passado e de outros tempos. Mas movimentos nascidos no seio do poder civil, conquistado pelo voto.

Esses movimentos autoritários nascem, muitas vezes, de equívocos praticados por nós mesmos, em relação a políticos que escolhemos. Em sua campanha à prefeitura da cidade, o bispo evangélico Marcelo Crivella repetia sempre que, uma vez eleito, ia “cuidar das pessoas”. Quem poderia imaginar que isso se traduziria nos “Guardiões do Crivella”, um aparato miliciano para impedir que aqueles dos quais deveria cuidar se manifestassem? O que pode ser mais grave é que esses desvios políticos vêm sendo cometidos em nome de crenças religiosas. Não em nome de crenças enquanto fé ou normas de uma religião; mas, quase sempre, em nome de seus apóstolos mais representativos, os representantes dessas crenças no mundo concreto dos homens.

É como se, cerca de mil anos depois, retornássemos aos tempos em que o poder civil era exercido pelos líderes religiosos, em benefício pessoal e de suas igrejas. O Ocidente levou alguns séculos para desmontar essa união perversa e antidemocrática entre Estado e religião. No Brasil, só conseguimos esse feito no final do século XIX, com a República. Será que o Estado laico agoniza no mundo? Será que vamos ter que começar tudo de novo?

Pior vai ser quando tivermos que enfrentar o misticismo cruel, oportunista e reacionário que já se espalha hoje pelo mundo. Nos Estados Unidos, além dos tradicionais grupos racistas e supremacistas, um novo misticismo de feitiçaria se organiza em torno de ideias como as antivacinação, pois as vacinas estariam sendo preparadas para nos afastar de Deus; ou como as do novíssimo QAnon, grupo que considera que o mundo está sendo regido por pedófilos. O herói e santo desse grupo, proclamado como aquele que vai nos livrar desse mal, chama-se Donald Trump, o presidente americano.

O Globo, 07/09/2020