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Os EUA do Ocidente

 

O pós-Iraque levou a União Européia a se organizar como protagonista cada vez mais reconhecível, no mundo ameaçado pela hegemonia galopante do outro poder ocidental. Frente a Washington, reforça agora as suas instituições políticas, e avança para o referendum da Constituição Continental.


Tanto o Plano Schuman deu a partida desta união há meio século, tanto hoje é ao nome de Giscard d'Estaing que se associa o remate do sonho desses novos Estados Unidos, que despontam no milênio.


O antigo presidente francês, anterior a Miterrand, que não admite ser chamado de ex, é o relator do texto, a poder entrar em vigor no próximo biênio, e que não deixa dúvidas quanto às novas conquistas políticas, após as econômico-financeiras. Busca uma política externa unitária para a Europa, ao lado dos dispositivos de uma força de segurança já claramente dissociada do NATO.


A Bósnia, o Kosovo e os impasses iraquianos deixaram a sua cicatriz. Mas o projeto de Giscard funda-se todo na realpolitik. Assenta os "mais iguais" no comando da nova realidade, assegurando o poder de veto à França e à Alemanha - esperando pela Inglaterra - mantendo as matrizes históricas de por onde começou o prodígio desta integração, vencendo todo o ceticismo original.


Giscard e seus companheiros querem agora apressar a aprovação da Carta, antes, inclusive, da entrada maciça da periferia européia no Parlamento de Bruxelas, levando a 25 estados, os sócios possíveis no novo corpus político continental.


O eixo do sistema dá-se conta de como, por exemplo, a admissão dos antigos satélites soviéticos só reforça, de imediato, o contrapeso americano, avançando pela porta dos fundos dos Bálcãs.


É o que desde agora mostra a absoluta vinculação aos Estados Unidos, manifestado pela Polônia e pela Bulgária, inclusive no envio de tropas ao Iraque e no apoio ostensivo à intervenção anglo-americana pelo delegado de Sófia, na histórica sessão das Nações Unidas, de fevereiro último.


Giscard, cioso desta persona européia, quer também cortar mais rente o seu perfil. Propõe-se a impedir a entrada final da Turquia no redil de Bruxelas, como deixa à responsabilidade de cada membro o risco, no seu entender, de lidar com a política migratória. Ao mesmo tempo, por sobre as fronteiras nacionais, valoriza regiões que as atravessam, como a franco-germânica, na Alsácia Lorena ou a flamengo-latina, no Benelux.


A defesa de um pluralismo prospectivo na emergente Federação Européia, mostra-se tanto na consciência dos fluxos islâmicos, que já vão à média de 4% de sua população, quanto na revisão do conceito clássico de uma Europa essencialmente cristã, com o direito teórico de reconhecer o princípio divino, expressamente, no seu preâmbulo.


Tal não se deu, entretanto, talvez a refletir o fato de que só em cinco países europeus mantêm-se a freqüência ao culto cristão em mais de 50% de suas populações, das quais a Polônia (77%), a Irlanda (73%), a Itália (53%), a Croácia (53%) e Portugal (51%).


A reação vaticana deu lugar a documento, inclusive, extremamente aberto de João Paulo II, ao se dirigir, nesses dias, aos católicos da Europa, ecoando a fórmula lograda pelos constitucionalistas de Bruxelas. Não se invocará Deus no preâmbulo, mais reconhecer-se-á a inspiração espiritual - e o seu impacto - no processo milenar de uma identidade histórica, que agora chega ao seu remate como instituição.


Inteiramente à margem das reivindicações clássicas de um Sacro Império, ou de Igrejas ligadas ao Estado, João Paulo II preferiu o chamamento e a lembrança a esta fertilidade continuada do cristianismo, expressa na valoração absoluta dos Direitos Humanos e, ao mesmo tempo, do pluralismo visceral de credos e crenças, que deverão adubar o sistema político federal ora em formação.


E, sobretudo, o Papa refuga qualquer integrismo étnico, apoiando as migrações africanas ou islâmicas, nesse esforço global de absorção das periferias em que a Igreja vê a continuação do impulso espiritual das religiões, virado o novo milênio.


Por certo as direitas européias continuarão a reclamar que, entre cada dois crimes nas megalópoles européias, um vem de migrantes recentes. Mas é da mobilidade dessas levas, dentro do nervo do continente que se está hoje na melhor contradita ao fundamentalismo e à ruptura do diálogo Islam-Ocidente, tão exasperada na volta aos guetos e ao fechamento total dos Estados Unidos ao avanço das culturas afro-árabes no seu seio.


Nos embates da nova Carta de Bruxelas, a vertente européia da nossa cultura quer vencer o discurso triunfalista de um Primeiro Mundo de eleitos, em favor das forças históricas que continuam à obra e querem garantir a diferença das culturas, dentro do processo civilizatório.


Sobretudo assegurar, na sua amplitude-limite, a idéia democrática contra qualquer cultura do medo que marque o seu sinal indiscutível: a negação do absoluto dos Direitos Humanos, em função da luta perpétua contra o terrorismo, que termina numa desconfiança radical do outro e da verdadeira convivência cidadã. Mais que a Federação Européia, a amplitude da perspectiva em que se levanta a Carta de Bruxelas, esta construindo, no exílio das luzes a que se condena a hegemonia americana, os Estados Unidos do Ocidente.




Jornal do Commercio (RJ) 4/7/2003