A necessidade de encher espaços nos jornais, rádios e sobretudo nas TVs criou, ou melhor, ampliou o número de pessoas entrevistadas que prestam depoimentos ou testemunhos sobre determinados fatos, comentam situações, dão aquilo que, desde tempos imemoriais, chamamos de palpite.
Nos jornais e rádios não se vê a cara do sujeito. Depreende-se apenas que ele está dizendo o que pensa ou acredita que pensa. Tolera-se assim o depoimento ou testemunho, sem avaliar o mérito da questão em si. Na TV é diferente. A cara aparece em close, com suas rugas, sobrancelhas crespas ou grisalhas, o olhar varado pela luz da verdade, a boca escolhendo as palavras definitivas que encerram a questão de forma inapelável.
Seja qual for o assunto, a convicção do depoente é sempre a mesma. Esperou-se tanto tempo, perdeu-se tantas oportunidades, criaram-se tantos equívocos - e ali estava a solução de todos os problemas, o poço da verdade, captada em seu momento indestrutível.
Outro dia, num desses programas da madrugada, revi a figura do notável historiador, já falecido, que até os 50 anos era apenas um veterinário no Rio Grande do Sul, e, depois dos 50, tornou-se especialista em tudo o que aconteceu ou desaconteceu nos anos 30 do século passado.
A tragédia de Hiddenburg, a revolução de 30, a guerra civil na Espanha, o campeonato mundial de 38, Carmem Miranda indo para os Estados Unidos, o Estado Novo, todo o movimento integralista, a ascensão de Hitler, as bicicletas de Leônidas da Silva, os grandes sambas de Ary Barroso, as prisões de Prestes, tudo o que aconteceu nos anos 30 tinha nele não apenas o tetemunho ocular da história, mas o profeta retroativo, que tudo previra, que tudo sabia e explicava.
Sua expressão era de desdém para com os fatos, tal como eles passaram para as outras gerações. Lia-se no seu rosto, mais do que em suas palavras, a velada queixa, "tantas coisas importantes e mal contadas, e eu aqui, dando sopa, e só agora se lembraram de ir à única fonte da verdade!"
O Pior veio depois. Substituindo o velho historiador na telinha, apareceu a minha cara falando sobre outro assunto mas com a mesma expressão facial: a de dono absoluto da verdade.
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 09/12/2003