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Os deuses de Hitler

 

Não tenho mais idade para me surpreender com nada que aconteceu, acontece ou acontecerá no mundo. Mesmo assim, como os dependentes de drogas, tenho recaídas atormentadas. Uma nem chegou a ser uma recaída, apenas me esquecera dela, e um livro sobre a Segunda Guerra Mundial a trouxe de volta.

Já no final do conflito, com a Alemanha praticamente vencida, Hitler jantava com o pequeno círculo de colaboradores que o cercavam na toca do lobo. Vegetariano, frugal, falando muito e alto diante de plateias imensas, era reservado, quase taciturno na intimidade.

Dois convivas falavam sobre Wagner, um deles preferia o "Lohengrin", o outro, "As Valquírias". Dois temas profundamente alemães, da velha mitologia germânica que nada tem com a sua equivalente mediterrânea que predominou no ocidente greco-romano.

Hitler, que admirava Wagner pelo conjunto da sua obra, praticamente não tinha preferências. Uns falavam que gostava muito de "Os Mestres Cantores", outros garantiam que sua alma fora vendida a "Tristão e Isolda". De repente, como que saindo de um sono milenar, o ditador disse pausadamente: "Quem não entende Wagner jamais entenderá o nazissocialismo".

Ninguém falou mais nenhuma palavra. Comeram em silêncio e cada qual ficou na sua. Hitler devorou uma torta com creme e levantou-se, retirando-se para os seus aposentos, deixando no ar aquela observação inesperada.

Sem escolaridade formal, vendendo pequenas aquarelas para os turistas que visitavam a catedral de Viena, cabo anônimo durante o primeiro conflito mundial, depois de ter conquistado metade do mundo e iniciando seu fim após ter desgraçado todo um tempo na história do homem, ele se refugiou em "Lohengrin", nas "Valquírias", sei lá em que diabo -no fundo, seu deus preferido.

Folha de São Paulo, 18/8/2011