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Os cuidados com a memória

 

Por motivos não muito claros, nosso povo constituiu-se com um apreço relativo pelo passado. Nem feitos, nem personalidades. Poucos resistem à erosão do tempo. A memória brasileira parece guardada por neurônios enfraquecidos.


Ao ser inaugurado o Sistema de Digitalização das Escolas Extintas do Rio de Janeiro, iniciativa da secretária de Educação, professora Darcília Leite, tivemos a nítida sensação de que estamos revertendo esse processo. Na mesma sala em que, há quase 50 anos atuávamos como professores, na Rua Hadock Lobo, 269, defronte à Igreja dos Capuchinhos, foram instalados computadores capazes de fornecer históricos escolares em dois minutos, o que antes levava meses.


Na apresentação da novidade, cercada de diretores e professores da rede estadual de ensino, a professora Darcília anunciou que ali estão guardadas histórias incríveis da passagem de 1,5 milhão de alunos e professores de 900 escolas extintas. Hoje, são 40 milhões de documentos preservados.


Como vimos no dia da inauguração, alunos de anos atrás buscam recuperar seus históricos escolares para prosseguir nos estudos, onde quer que seja (uma das interessadas pedia por uma irmã residente nos Estados Unidos). Outros, para fazer prova na procura desesperada por empregos. Ou seja, uma seção oficial de extrema utilidade, que contou com o know-how da Fundação Ricardo Franco, ligada ao Instituto Militar de Engenharia (IME).


Para nossa surpresa, o primeiro documento que saiu do computador foi o histórico escolar do aluno Arnaldo Niskier. Boas notas do velho admissão até o final do ensino científico, garantindo ao estudante pobre o primeiro lugar da turma, para que com isso ganhasse a bolsa salvadora. Relembrar esses fatos não é só um exercício de emoção. Serve também de exemplo.


Recordamos o que foi a verdadeira epopéia da construção do prédio ao lado (Pavilhão Ney Cidade Palmeiro). Quatro andares financiados, em boa parte, pelo sacrifício voluntário dos professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do Distrito Federal (UDF). Deixaram de receber seus minguados salários durante mais de dois anos, para doar à nobre iniciativa do então diretor Ney Cidade Palmeiro. Depois, ali funcionaria, a partir da origem, o conceituadíssimo Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, depois instalado mais confortavelmente no prédio da antiga Escola de Enfermagem Rachel Hadock Lobo, na rua Barão de Itapagipe.


As recordações são variadas, para quem viveu sua infância e adolescência naquelas redondezas. Olhamos para as belas palmeiras do La-Fayette. E aflorou um sorriso, incompreensível para os demais. Foi a lembrança do decreto governamental de março de 1983, proibindo que o local se transformasse em mais edifícios grudados uns nos outros.


Convencemos o governador Chagas Freitas a tombar o Instituto La-Fayette. Nossa assinatura também ficou naquele histórico documento. E ali hoje estudam mais de duas mil crianças, graças à generosidade da Fundação Bradesco. Por que não recordar com uma ponta de orgulho e felicidade toda essa história, antes que saia da nossa memória? Ou jamais sairá?


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 07/07/2003

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em, 07/07/2003