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Os canhões de Copacabana

 

Acontece que o sol exagerou. Ali, na altura do posto quatro, ele surgiu das águas, vermelho e doce apesar de tudo, jogando sua luz dourada sobre a cidade que amanhecia. Súbito, dei com a vista num imenso monstro na ponta do posto seis. Parecia um inseto repelente pousado sobre a pele da terra, um carrapato gigantesco, com duas garras levantadas para o céu coberto pelo ouro do Sol. Não era uma invasão de insetos repugnantes: apenas a silhueta de dois canhões que saiam de sua carapaça côncava e metálica, assinalando o Forte de Copacabana.

Houve um episódio que contraria a ética dos canhões: atiraram contra a própria terra numa das revoltas contra o presidente da República, que ainda morava no Itamaraty. Os canhões não atingiram o alvo mas danificaram uma das torres da Candelária. Amigos do presidente pediram que ele deixasse o local. Ele preferiu ficar porque "ali era mais seguro".

Também atiraram contra a própria terra, na revolta conhecida como 18 do Forte. O tenente Siqueira Campos passou a noite tentando virar os canhões para a praia, mas estavam emperrados. Impossibilitado de bombardear a cidade, o tenente e seus colegas decidiram enfrentar as forças do governo na própria areia, que ficou manchada de sangue. Para valer, os canhões só dispararam contra o cruzador Tamandaré, que levava o presidente deposto na manhã de 11 de novembro de 1955. Não acertaram o alvo e o navio, embora funcionando com um motor, escapou.

Não tenho nada contra o Forte em si, dizem até que ele é bonito, uma de nossas obras primas da arquitetura. Acredito e louvo. Mas aqueles canhões obscenamente escancarados bem que podiam ser deslocados da paisagem. Além de inúteis, são feios e grotescos: lembram episódios pouco edificantes (e nada gloriosos) de nossa história.

Folha de S. Paulo, 18/01/2015