Lula marca agora no Oriente Médio o fio natural de desdobramento desta inédita presença exterior do Brasil. Sistemática, conseqüente, e disposta a encher o palco desta nossa nova visibilidade. Chega à Beirute dias após o reconhecimento, pela Time, desta liderança emergente do Brasil que não se quer mais ver na prisão sob palavra do Mercosul. Cancún foi o começo do arranco a mostrar o quanto a estabilização foi tão só o cacife da nova credibilidade internacional do governo que começa a falar grosso, no avanço das reformas internas, e lá fora pela rebeldia aos rótulos de periferias, ou terceiro-mundismo.
As conversações de Miami, graças à visão de largo prazo de Celso Amorim, já puseram os Estados Unidos na defensiva - senão na retaliação - de debates como o da presença do Estado no mercado, ou a disciplina da propriedade intelectual.
As areias movediças do pós-Iraque criaram um novo teatro para a toma da palavra externa, face à quebra do clima das cruzadas antiterroristas e a viabilidade do fracasso eleitoral de Bush em 2004. É o Lula lá que começa a primeira viagem de Chefe de Estado brasileiro pelo Oriente Médio, e o faz pelos dois países de presença tão maciça na imigração brasileira e na construção da prosperidade de São Paulo, como a Síria e o Líbano. O arco estratégico da viagem vai do nosso mundo árabe doméstico até ao recado do diálogo, em áreas antes suspeitas de passarem pelo eixo do mal, como a da Líbia de Kadafi, que de há muito já conta com uma pauta comercial ponderável com nosso país.
A proeza adensa a mensagem de Lula, enquanto começa por Damasco, capital do país, na área mais ameaçado de retaliação americana, após a queda de Saddam. É um perfil de independência, o do Governo brasileiro, recortando a sua visita ao filho de Assad, protagonista do mesmo sonho de há um quarto de século, da Constituição República Árabe Unida, envolvendo o Egito e o Iraque, cuja bandeira, apeada pelas tropas americanas, mantinha as estrelas desta confederação sempre em propósito e caminho.
Por força, o realismo negocial inclui a parada em Abu-Dabi e Dubai, reforçada pelo avião lotado que lá desembarca, de empresários brasileiros. Mas a Arábia Saudita ficou de fora da visita, tanto quanto o Kuwait, ambos como bastiões dos jogos feitos dentro da cruzada de Washington. Esta viagem, que costurou uma paisagem altamente pluralista, abraçada pelo Brasil, debruça-se toda no que resultará, no Iraque, do momento de saída dos Estados Unidos. Se, a tempo, ainda de retorno a legítima independência do país, ou de confronto à modelização das instituições à imagem americana.
Uma estratégia a largo prazo em bem das alianças pela paz estável, contra a hegemonia dos fundamentalismos obstinados, passa também pelas revisões do que sejam, como critérios de normalização, como o da consolidação democrática em área tradicionalmente avessa ao regime que o Ocidente avaliza, como a garantia de respeitabilidade internacional. Tal pode chegar, inclusive, à premissa de que, seguros-seguros contra qualquer intervenção do poder de polícia que se arroga a hegemonia, estariam só os regimes indiscutivelmente sancionados pelo voto popular. E num paradoxo curioso, inclusive, neste domínio se encontra o indiscutível peso de consenso das urnas, que já colheu Kathamy em duas eleições, neste Irã que é meta provável da próxima viagem de nosso presidente.
Na área que ora visita Lula mais se exacerba o conflito - e a rejeição - entre democracia e a específica cultura árabe no Islã. E embalde procurarão terreno fértil as tentativas de modernização com que o governo americano que refazer os fundamentos políticos do Iraque, mediante as injeções da prática democrática e do rito eleitoral, como consagrador de um placet de Washington. Não há região no mundo, talvez, onde a realpolitik dos Estados Unidos tenha feito mais concessão - ao mesmo tempo - ao regime ideal que impõe a partir de suas pranchetas numa ortopedia histórica, sem anestesia. O que se elide nesta cirurgia traumática é o próprio suposto social do país, que só, efetivamente, a partir do partido Baath logrou, durante o governo Saddam, reconhecer-se, de fato, como uma nação.
O imbróglio do interventor de Washington, Paul Bremer, a forçar todas as suas agendas de exit, vem do verdadeiro torvelinho em que regrediu o Iraque, a partir, desde agora, dos conflitos invencíveis entre os contingentes tribais de sunitas, xiitas, curdos, ou turcomenos, e muitos liderados por figuras de retorno de exílio, de antes da própria modernidade do Iraque. O desmonte, por outro lado, do Exército, apoiado em legítima expressão da nacionalidade nascente do Iraque, é talvez demonstração de que o abate da ditadura não se pode assimilar ao das próprias raízes em que o Estado iraquiano venceu o feudalismo tribal.
Este Oriente Médio a que Lula dá o exemplo de uma visita em bloco, na área mais ameaçada do mundo, mostra o arranque em que as novas alianças, fora da dita coalizão ocidental, vão superar, por definição, blocos regionais, tal como indica a aliança em gestação entre o Brasil, a África do Sul e a Índia. Mas, nos Estados explosivos que Lula contornou, o recado brasileiro assenta-se sobre o horror de parede-meia, entre os massacres em Bagdá, e a guerra sem fim israelo-palestina. O choque e o repúdio das bombas da prostração do Iraque não se dissociam mais do basta ao mais empedernido dos conflitos do nosso tempo. A ONU que volte, em pleno, ao Iraque, não pode deixar de estender a presença dos capacetes azuis das capitais afins, junto aos massacres de antes do Al-Qaeda e da explosão das torres gêmeas. Aí está, nestes dias, o novo plano de Genebra. É o reclamo contra a paleo-abominação que cobra o seu grito em Ramalah ou Jericó, de antes das Star Wars, de Bush I e II.
Em toda esta trajetória sobreleva, afinal, o ineditismo da relação direta que a estadia no Cairo assegura na entrevista de Lula com a Liga Árabe. É conquista de plataforma para que se internacionalize, de mais a mais, a voz brasileira fora das cangas geográficas. Lula não volta de mais uma viagem. Os sucessos não se somam aritmeticamente. O multiplicador põe-se à obra, neste cenário que pela primeira vez depara com o presidente torneiro mecânico.
Jornal do Commercio (RJ) 5/12/2003