Garantem as folhas que é uma onda fria, vinda do Sul, de onde chegam todas as ondas frias, até aí, não há novidade.
Nunca se ouviu dizer que o frio veio do Ceará ou do Piauí. A novidade é que está fazendo um friozinho gostoso aqui no Rio e eu olho e curto a minha cidade de outro jeito. Nada de praia, com muita luz e confusão, sem o chope azedo que fede duas esquinas antes de cada tasca. Sobra um Rio quase civilizado, quase manso como um corno, sem a agressividade da luz e do calor, a urgência de aproveitar a vida.
Tão bom que faço o impossível: em pleno domingo, tiro o carro da garagem (fazia isso no tempo das minhas setters Mila e Titi) e saio sem destino, dando voltas pelas ruas que cruzo diariamente sem sabor e sem afeto. Sim, aí está a minha cidade, aqui nasci e vivo, se possível aqui morrerei e meu pó será diluído neste ar e neste chão.
Passo sem querer (ou talvez por querer demais) na rua onde nasci, tantos anos passados. Relembro que durante alguns anos trabalhava duas esquinas adiante. Vivi meio século para atravessar duas esquinas na vida -na verdade, sou um fracasso. Tive e tenho amigos que vieram de longe, de Sobral, de Manaus, de Kiev, de Viena -e eu aqui, chumbado neste chão tamoio que, segundo alguns saudosistas, já era.
Volta e meia entra em discussão a decadência do Rio, o esvaziamento cultural e artístico da cidade que foi capital do Brasil durante quase dois séculos. Brasília dá conta do recado, todo dia chega um escândalo de lá. São Paulo não é mais terra da garoa, é terra de enchentes. A Bahia -bem, e aí entra a moleza- a Bahia é a terra dos santos e orixás, mágica e mítica. Segundo Vinicius de Moraes, ali os baianos fazem a arte e o engenho de viver a verdade -conheço esses babados, Vinicius de Moraes acreditou neles pelo espaço de dois verões, mas veio morrer na sua terra, no Rio, que ninguém é de ferro, nem mesmo os baianos adotivos.
Tantas vezes li que o Rio estava falido em todos os setores, sobretudo no campo das letras e artes, que já assumira a postura e o orgulho do provinciano que fica à espera das novidades vindas dos grandes e inesperados centros.
Em compensação, por prazer ou por trabalho, é que viajo com frequência. O fato de ter nascido no Rio já torna o carioca mais ou menos aberto ao mundo, não por necessidade, mas por curiosidade. Sinto-me melhor em Roma ou Florença do que no calorão da avenida Chile, como melhor no Trastevere do que no Mercado Modelo da Bahia. Podem me xingar, mas sei o que sou fazendo e sentindo.
Voltemos ao Rio. Tão cantada e decantada a sua decadência, eis que reencontro, num fim de semana plúmbeo (sei que os baianos conhecem e apreciam esta palavra, aqui no Rio seria apedrejado se a proferisse) a doce verdade: o Rio procura renovar seus encantos -que já são muitos, mas não bastantes.
A revitalização da zona portuária e da Lapa provoca grandes expectativas. A contratação do Fred para o Fluminense e do Adriano para o Flamengo foi comparada à conquista das Gálias -ouvi isso numa das mesas de esporte que enchem os domingos em todos os sentidos. A Rede Globo continua exportando o sotaque e as mazelas do Sudeste para o resto do país e até para Portugal e países lusófonos -um descalabro que não conta com a minha benção, mas ainda não chegamos ao descalabro pior de importar o sotaque e as mazelas de Petrolina, Própria, Campina Grande ou Marília.
Para acontecer mesmo, para se tornar nacional, um fato ainda precisa repercutir aqui no Rio. O finado prefeito Marcos Tamoio dizia que o charme da cidade não vinha do Corcovado nem do Pão de Açúcar, vinha do próprio nome: Rio. Três letras apenas, que a gente lê nos aeroportos do mundo: Rio.
Fellini se apaixonou por Roma quando, menino, em sua cidade natal, Rimini, viu num vagão de trem a placa com o nome: Roma. Em tempos de orgulho gay, toda vez que vejo o nome da minha cidade, mesmo num ônibus que chega de não sei de onde, coberto de pó e fadiga, sinto um orgulho besta e sempre renovado de aqui ter nascido, o rio de minha vida e de minha saudade.
Folha de S. Paulo, 3/7/2009