Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A organização da inconsciência

A organização da inconsciência

 

Foi por volta de 1940 que li sobre opinião "inconsciente", expressão lançada pela psicologia renovada. Mas o que eu não poderia nem de leve prever é que aquela denominação, aparentemente extravagante, fosse cientificamente abonada e viesse ajustar-se ao quadro eleitoral brasileiro de um passado recente.


Para dar exemplo típico do poder mágico do truque ou do embuste na propaganda política, devo recordar a maciça consagração do mais jovem candidato nas urnas de 1990, malogrado, contudo, na votação de um impeachment, dois anos após. Outras consagrações vieram, em arrancadas para governos estaduais, para o Congresso, para assembléias legislativas etc.


Quem, a rigor, venceu nesses pleitos? Um raciocínio superficial, ou ingênuo, acabaria desembocando na conclusão de que foi um partido ou a sedução pessoal deste ou daquele candidato. Esse pressuposto não teria consistência.


A verdade crua é que, do ponto de vista da utilidade social e política, já não havia partidos. Nabuco, em pleno Império, tachava-os de "construções no vácuo". E recorde-se que naquela época só dois esgrimiam: o conservador e o liberal. Que diria hoje o esteta da Abolição, o finíssimo Joaquim? Teria de reconhecer que tais organismos acabaram praticamente substituídos por institutos de pesquisa de opinião, núcleos de sondagem ou coisa sinônima; empresas ou firmas com as quais pessoas, ou partidos, contratam a pressão, tecnicamente perfeita, sobre o eleitorado teoricamente livre.


Não é livre: torna-se prisioneiro da ação narcotizante - aquela "pressure" avassaladora em que são mestres os lobistas, comunicadores ou marqueteiros americanos.


É claro que lá, na república do marketing, como entre nós, tais grupos ou empresas têm o direito de operar, de produzir e zelar pela sua saúde financeira. São, no geral, firmas de criaturas laboriosas, sagazes, dignas de aplauso - e para muitos até de inveja - pela sua perícia na lida. Mas o que teremos de ponderar é que é tempo de marcar a fronteira entre liberdade de empresa, ou de comércio, e a conveniência efetiva do regime democrático.


Estamos diante de um problema político-jurídico: a lei deverá reduzir substancialmente a divulgação dos resultados das pesquisas contratadas, proibindo-a, no mínimo, um mês antes das eleições. Não há maior coação do eleitor do que essa que lhe entorpece a mente pela insistência desabrida, e às vezes sutil, na exaltação do produto (leia-se: do candidato ou candidatos). Transfere-se para a cena política a técnica da propaganda mercantil.


Há poucos anos, nos Estados Unidos, pesquisadores universitários atuaram em diferentes estados da federação, interrogando pessoas de vários níveis sociais sobre o consumo de Coca-Cola. Pois bem, em várias áreas investigadas, apurou-se que quase 50%, e às vezes ainda mais, consumiam sua Coca, mas não gostavam do refrigerante do século!


Ora, a conclusão a extrair desse resultado desconcertante só pode ser uma: as pessoas consultadas não bebiam Coca-Cola; bebiam anúncio, sorviam propaganda, engoliam cartazes. No caso, até mesmo o paladar e o apetite acusariam um quadro clínico de inconsciência. Foram dominados, aqueles grupos, por um processo tautológico; acabaram vencidos pela insídia da repetição nos muros, nos postes, nas árvores, senão mesmo nas portas das igrejas.


Li, já não me lembro onde, que excelente repórter americano, John Gunther, indagou de Josef Goebels, ministro da Propaganda de Hitler, como seu chefe havia conseguido empolgar, até ao delírio, a grande Alemanha. Goebels frisou a resposta, entre orgulhoso e cínico: "Repetindo, repetindo e repetindo." Iremos confirmá-lo no trópico, sempre que formos às urnas, conduzidos pela propaganda audiovisual?


Uma legislação mais avisada e mais eficaz terá de impedir que o ato eleitoral no Brasil (com a agravante de ser obrigatório) se exerça sob a pior forma de coação do eleitor, vítima de um outro narcotráfico dos nossos dias: a propaganda mecanizada, que acaba produzindo a turbação das consciências pela ação tautológica dos instrumentos de motivação estatística, a antecipar resultados, às vésperas da abertura das urnas.


É nessa altura que o eleitor recebe a numeração da vitória, no quadro dos mais votados... Quando a massa da população vai chegando para votar, já está feita a eleição, pois feitas já estão as cabeças, tomadas pelo anúncio e tolhidas pela repetição inebriante dos algarismos. Substituem-se os partidos pelas agências particulares de captura do eleitor, que acaba votando pela lei do menor esforço - ou de cansaço. Em qualquer hipótese, entorpecido, drogado, permitam-me, pela técnica da repetição, fadada, quase sempre, a anestesiar o raciocínio da maioria ou o que tem de mais rudimentar: a capacidade de cotejar valores.


 


O GLOBO em 01/04/2002

O GLOBO em, 01/04/2002