Nenhum latino-americano escapou de se perguntar, um dia, se a América Latina de fato existe. Não aos olhos estrangeiros face aos quais uma estranheza nos irmana, mas aos nossos próprios olhos, quando nossas diferenças parecem irremediáveis. A cicatriz de Tordesilhas teria tornado o pertencimento latino-americano difícil para os brasileiros, não fora Gabriel García Márquez que, com sua literatura, apresentou a América latina a seus filhos, transfigurada na força torrencial de seu imaginário.
Nós, latino-americanos, creio que o seríamos menos, não fosse a ficção que escrevemos sobre nós mesmos com a fidelidade perfeita que tem a verdade das mentiras de que fala Vargas Llosa. Vargas Llosa tem razão, toda ficção é uma forma de utopia, nasce de uma relação ao mundo sentida como inconclusa. García Márquez à frente com a estatura maior de sua obra, a literatura latino-americana se fez uma pátria mítica e aproximou identidades.
A ficção de García Márquez transpira esse desejo de viver para contar essas mentiras que dizem a verdade sobre nossas sociedades, nossos países. Sua ficção não conta apenas o que uma sociedade é, mas o que ela gostaria de ser, não documenta somente vidas improváveis, mas também os demônios de uma época que não é feita só de gente de carne e osso, mas também de fantasmas. O fantasma das revoluções e seus comandantes, os caudilhos e anti-heróis, as guerras civis, as ditaduras militares, que assombram há mais de cem anos a solidão da América Latina e integram, em “Os funerais da Mama Grande”, o testamento desta que foi “a dona de toda a chuva chovida e por chover”.
O século XX foi um tempo de agonia em que a morte veio ao proscênio arrastando consigo os despojos de bom número de convicções. Morte de Deus, morte do homem, morte do sentido. Os próprios artistas proclamavam, então, a morte da Arte. Contemporâneo dessa condenação, García Márquez publica em 1967 um romance prodigioso, “Cem anos de solidão”. O mesmo Márquez que, ao receber o Premio Nobel de Literatura, em 1982, encerrou seu discurso de Estocolmo invocando Wiliam Faulkner que, no mesmo local, 30 anos antes, declarara: “Nego-me a admitir o fim do homem.”
Márquez fechou seu discurso afirmando não ser demasiado tarde para empreender uma nova e arrasadora utopia de vida onde ninguém possa decidir pelos outros, até mesmo a forma de morrer, onde o amor seja seguro e a felicidade possível, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.
García Márquez cumpriu o destino da grande literatura, aquela que capta a cadeia de mensagens que a humanidade ao longo do tempo transmite em código estético e de cuja descodificação se alimenta a memória coletiva e o sentido de pertencimento à aventura humana. Sua noção de cultura registra a herança do passado, a tradição do Amadis de Gaula e dos romances de cavalaria — Dom Quixote lia romances de cavalaria — e reconhece no presente o tempo cíclico que, como um cão raivoso, morde o próprio rabo. E que dita o passo de vidas que caminham no fio da navalha entre o fato histórico e o imaginário, convivendo com o mistério integrado ao cotidiano com a naturalidade com que o dia amanhece. Nada fantástico, como erroneamente se disse, apenas lembranças. Não o realismo fantástico e sim os fantasmas da nossa realidade.
Segundo o próprio autor, tudo que escreveu já sabia ou já tinha ouvido contar quando tinha 8 anos, talvez um exagero a mais no que, em sua ficção, é recorrente, associado a uma escrita em ritmo de reiterações superlativas que a faz encantatória. E, estruturante, a dimensão do sonho que alimenta as 32 guerras civis, todas perdidas, do coronel Aureliano Buendía.
Que grande literatura poderá ainda gerar este mundo desencantado que é o nosso, que se satisfaz com as migalhas que o consumo espalha sobre um cotidiano medíocre, pontuado por sonhos esquálidos cuja expectativa de vida não vai além do dia seguinte? Um tempo infenso à aventura coletiva, sem promessas e sem heróis — heróis viraram ditadores, revolucionários se corromperam — um tempo de órfãos da esperança. Um tempo sem sonhos e sem lembranças, que vive no imediato e imediatamente destrói o que viveu.
A morte de García Márquez, a indefinição sobre a quem pertencem suas cinzas que não encontram uma terra sua para adubar, copiam como pastiche os seus mais improváveis enredos. Epílogo na história de um personagem trágico, um homem de lembranças ferido de morte pela doença do esquecimento.
O Globo, 26/4/2014