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Opinião: O papa da fé na história

 

A última exortação papal, ou as penalidades impostas ao jesuíta Jon Sobrino, em El Salvador, não podem descarrilar o tempo profundo da expectativa de chegada de Bento XVI ao Brasil. A longa espera pelo pontífice remete-se à resposta - e quem sabe à sua surpresa - ao avanço que empresta o papa filósofo aos caminhos da Igreja no seu tempo. A prioridade de Ratzinger está no confronto com a secularização, na busca radical dos valores de uma cultura cristã, mantendo o diálogo entre a razão e a fé.


O que se viu, nos temas realçados pelas manchetes, são repetições do que, neste momento, sai do eixo em que o papa quer afirmar a sua crença encarnada. O sínodo de 2005 dizia respeito à Eucaristia e a reiteração incidente sobre a temática social foi precedida, há um mês, pelas declarações do cardeal Bertone, secretário de Estado, ao primeiro-ministro Prodi, da Itália. Referiam-se à legitimação dos casais de fato, e à disciplina da família, ambos em confronto frontal com a doutrina da Igreja.


O novo - e o que marca, talvez, estes sinais profundos dos dias de hoje é que Ratzinger não quer impor um credo a um Estado laico, mas aceita seu confronto, na plenitude da sociedade democrática. É o efeito da discussão crucial do pontífice com o filósofo Habermas, de reconhecer a necessidade da convivência plural no debate crítico. A modernidade, para o papa, abriga uma Igreja que traga a sua convicção à força dos argumentos, sem partir de um privilégio ou de um reconhecimento pelo poder à sua verdade. A presença de Ratzinger na Mesquita Azul de Istambul, voltado para Meca, quebrou toda escalada de um fundamentalismo cristão, como marca tão temida de um novo pontificado. A secularização enfrenta, de dentro do seu próprio processo, a fala da Igreja no quadro da interculturalidade contemporânea. Não é o combate pela crença intrínseca, mas pela chamada à sua atualidade concreta, tão distinta do missionarismo colonial clássico, ou dos combates ao modernismo, de São Pio X, há um século atrás. Busca o papa, hoje, uma comunidade religiosa "numa sociedade leiga e pluralista". Até, quem sabe, como sinaliza o próprio Habermas, poderemos caminhar para uma sociedade pós-secular, como mostram os surtos religiosos dos últimos anos? Ratzinger cobra uma fé questionante, à força do debate racional e a partir dele de um diálogo universal, mais exigente do que, por exemplo, o do contato com as fés do ecumenismo pós-conciliar.


O novo, em Ratzinger, não passa, de saída, pelo que anuncie, mas pela ética exigida, previamente, à busca da verdade. Ou seja, a de não deixar dúvidas, nos interlocutores, que não parte de um diktat mas da certeza do poder da comunicação da racionalidade da crença. E, com Habermas, ratificou a exigência do chão pluralista para fazê-lo. A mensagem se concebe como uma prática de liberdade, no laço comunitário da vida da fé. É, pois, pelo marco da democracia que Ratzinger vê o engaste da Igreja no processo da secularização, e de como o seu testemunho aqui e agora não envolve um retroceder histórico, como o de São Pio X. E, repete o papa, é o campo dos direitos humanos que permite ao ethos cristão um novo batismo da história, imune a todo relativismo das culturas.


Um intelectual na cátedra de São Pedro, como não acontece, talvez, desde Bento XIV, na Renascença, sabe do que seja o avanço da consciência no concreto da realidade; do repto da verdade encarnada; e do que seja a sua leitura, frente à ciência, e aos impasses do relativismo. Ratzinger, que evitou o choque com o fundamentalismo corâmico em nome da Igreja versus populum, volta-se para o diálogo, como apriori para um anúncio mergulhado nas tensões do seu tempo. Não estamos no século do "creio porque é absurdo". Mas da busca do universal do entendimento, para que a secularização não confunda um descarte dos valores com uma dita visão "irracional" do absoluto.


Jornal do Brasil (RJ) 21/3/2007