Mesmo antes da fotografia, cenas importantes da história dos povos eram retratadas por artistas famosos. Que usavam tanto o conhecimento do que havia acontecido como sua própria imaginação. A distorção da realidade era inevitável, mas, de qualquer modo, trata-se de obras importantes. No caso do Brasil, permitem uma sempre oportuna reflexão sobre a relação entre povo e poder.
Três quadros são, neste sentido, paradigmáticos, a começar por A primeira missa no Brasil, do catarinense Victor Meirelles de Lima (1832-1903). De origem humilde, Victor Meirelles teve, no entanto, seu talento logo reconhecido, tornou-se aluno da Academia Imperial de Belas Artes, aperfeiçoou-se na Europa, especializou-se em pintura histórica. Seu quadro mostra a primeira missa rezada em nossa terra. Vemos ali, diante de um improvisado altar, um padre, no momento em que eleva no ar o cálice com o vinho. Próximos a ele, frades e os descobridores, alguns com couraça e armas. Na periferia, sentados no chão, ou sobre árvores, os índios, aparentemente espantados com o que estão vendo.
O segundo quadro é obra do artista paraibano Pedro Américo, que, como Victor Meirelles estudou em Paris e era um respeitado representante da arte acadêmica no Brasil. Em 1888, e a pedido do governo imperial, pintou uma gigantesca tela, de quase 8 metros de largura por 4 metros de altura, que atualmente está no salão nobre do Museu Paulista da USP. A denominação original era Independência ou Morte, mas a obra ficou conhecida como O grito do Ipiranga. Além de Dom Pedro, os personagens principais são os garbosos cavaleiros da comitiva; formam um semicírculo à direita e à frente do grupo principal. À esquerda, Pedro Américo não colocou cava leiros; mas, e até por questões de simetria, algo, ou alguém, tinha de aparecer ali. O artista então optou por uma solução que, se não chega a ser inusitada, pelo menos chama a atenção. O que temos ali, à esquerda, é um homem do campo, conduzindo uma carreta com toras, um espectador absolutamente casual que olha a comitiva com óbvia curiosidade e até espanto.
O terceiro quadro é de Benedito Calixto de Jesus (1853-1927) pintor, desenhista, professor, historiador. Retrata a proclamação da República pelo Marechal Deodoro da Fonseca. O cenário agora é um quartel e na obra só aparecem soldados; nada de índios, nada de carreteiros. Como disse, numa carta famosa, o jurista, político e jornalista Aristides Lobo: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava.” E mais tarde completaria Raul Pompéia: “Desenganem-se os idealistas: o povo fluminense não existe. Dirão que o povo fluminense fez a agitação abolicionista e a agitação republicana. O povo não fez nada disso. Um grupo de homens denodados, bastante ativo é certo, fez o movimento abolicionista e o movimento republicano do Rio de Janeiro. Em volta desses campeões devotados, acercavam-se curiosos; e foi só”.
Ou seja, os brasileiros foram apenas observadores das cenas fundadoras de nossa nacionalidade. Observa o historiador José Murilo de Carvalho: “No campo da ação política, fracassaram sistematicamente as tentativas de mobilizar e organizar a população dentro dos padrões conhecidos nos sistemas liberais.” O que contrastava fortemente com a participação popular em eventos religiosos, no carnaval, no futebol e também em movimentos associativos. Diz José Murilo, a respeito do Rio de Janeiro: “Havia na cidade, em janeiro de 1912, 438 associações de auxílio mútuo, cobrindo uma população de 282.937 associados. Isto representava, aproximadamente, 50% da população de mais de 21 anos, um número impressionante”.
Ou seja, o povo participava, sim. Mas participava nas coisas que correspondiam às suas necessidades, a seus sentimentos.
Esse é o desafio enfrentado pela política brasileira às vésperas das eleições. Votar as pessoas votam, porque é obrigatório. Mas votam como observadores, ou votam como participantes? A resposta depende da população e depende dos políticos. Se estes forem, como devem ser, os legítimos intérpretes dos anseios dos brasileiros poderemos ter deixado para trás um passado de espectadores indiferentes ou, no máximo, intrigados. E aí teremos realizado o sonho brasileiro.
Correio Braziliense, 7/9/2010