O porteiro me entregou a caixa, enviada por Sedex. Ao abri-la, dei com um caderno negro, que registra minha passagem pelo Colégio Progresso de Araraquara. Até então, eu carregava um mistério: onde estava um ano de minha vida, 1946? Era um vazio. O caderno resolveu.
A resposta veio agora de Leliana Serafim, diretora do Progresso, como é chamado, onde cursei parte do primário (hoje ensino fundamental). Podem pensar: o que interessam estas observações em momento de pandemia, quando a cloroquina vem sendo enfiada pela goela abaixo de milhares de brasileiros por vontade caprichosa de um megalomaníaco alucinado? Este homem da moto, easy rider temporão, cultiva a memória de seu inspirador, o coronel torturador. É o que lhe dá prazer. Intoxicar-nos de cloroquina e levar-nos à morte, talvez seja algo que provoque orgasmo. Psicanálise rasteira, talvez absurda. O que é absurdo hoje?
A outra era a respeito daquele vácuo em minha vida de estudante. Sabia – porque meus pais me disseram ou imaginei que me disseram – que eu tinha iniciado o curso primário em 1942, aos 6 anos de idade. Assim, fazia as contas: dois anos em uma escola particular, 1942-1943. Dois anos no Progresso de Araraquara, 1944-1945. Um ano de cursinho com dona Antonia para o exame de admissão ao ginásio em 1946 e a entrada no colegial, o IEBA, em 1947. O fim do curso deveria ter sido 1950. Porém, o diploma está aqui com a data: final em 1951.
Ainda no Progresso tive menção honrosa em um concurso de desenho promovido pela Embaixada de França com o tema “Como Você Vê Paris Libertada.” Ganhei uma edição do Pinóquio e um livro sobre Barba Azul. Eu, o pior aluno de desenho de toda a minha história escolar, ganhando prêmios?
O livro negro em minhas mãos mostra os dados de modo límpido. Fiquei na escola de Lourdes Prada entre 1943 e 1944. O início era aos 7 anos, não aos 6. Daí o ano oculto. Fui para o colégio, com uma bolsa dada por Emilia Albertini, amiga de minha mãe, ambas católicas. Daisy, irmã de Emilia, me deu aulas ali, era linda, grande paixão. Fiz terceiro e quarto anos em 1945 e 1946. No ano seguinte, fiz cursinho e entrei no IEBA em 1948. O vazio não existe mais. Também verifiquei que era tímido, mas mal comportado, cada nota ruim! Ou ficou confusa a narração? Culpa do isolamento...
Vi a lista de presença e, dos colegas do terceiro ano, somente o Alberto Haddad está vivo. Em março de 1945, tive um colega novo, o Edson Pereira da Silva, casado com a Vera de Oliveira, pais do Alexandre, um cronista da cidade, e do Gustavo, chef do restaurante Vittorio. Edson, Ronaldo Bertoldi e meu primo-irmão Antonio Lopes, o Tóni, são meus três últimos amigos vivos de infância.
Criou-se, no entanto, novo mistério. Tenho certeza que me lembrava de duas meninas na mesma classe, Marilu Morganti e Maria Helena Vieira. Eram ricas e, como disse Scott Fitzgerald a Hemingway, certa vez: “Sim, os ricos são diferentes de nós, eles têm muito dinheiro”. Eu sabia que as duas tinham livros de histórias infantis luxuosos, ilustrações incríveis e também álbuns de gibis que ninguém possuía. Mais, elas me emprestavam, mesmo sendo eu um remediado. Um encantamento.
No entanto, em nenhum momento neste livro de presenças aparece a Marilu. Ela estava em outra classe? Porque eu via o chofer que a buscava na saída. Maria Helena Vieira, sim, era colega. Maria Helena e Marilu. Juntei duas em uma? Criei estas “amizades” no imaginário? Queria que me emprestassem os livros mágicos? Lia no recreio, escondido delas, na sala vazia? Como funciona a mente, caríssimo Sidarta Ribeiro, neurocientista que é?