Quando escrevi, já faz tanto tempo, o meu livro Em torno da sociologia do caminhão, tinha exata noção de que haveria de ainda ler muito pelo tema sobre o qual me apaixonei. Há um provérbio hindu que recomenda somente falar quando isso vier a ser melhor do que o silêncio. Depois da provocação da leitura do livro Olhar itinerante, resolvi quebrar o silêncio recomendável e tentar dar um depoimento mais do que entusiasmado.
Seus autoras, Heloísa Helvécia e Túlio Grespan, foram zelosos pesquisadores e capricharam em texto e ilustração. O leitor encontrará no livro os calos do trabalho de quem o compôs com palavras e imagens. É livro vivido, sofrido, comparado. Por isso, merecedor da mais linda recomendação. O livro é ricamente ilustrado. É bom de ver.
Certa vez, já escrevi que a influência do caminhão na vida brasileira de hoje alcança o homem, o animal e as coisas. Cria um linguajar próprio. Forma novo tipo humano. Civiliza. Aproxima as distâncias. Faz crescer economias e populações. Enriquece o folclore. Cria mitos.
Tipo fabulosamente ativo é o seu motorista. Noite ou dia, seu ritmo de ação não diminui. É mais um viajor noturno; no nordeste, nas rotas áridas do sertão, por força do sol causticante; no Sul, o nevoeiro e a queda de temperatura ditam-lhe marchas diurnas.
Jacques Lambert impressionou-se com seu destemor e escreveu: “Os motoristas de caminhão no Brasil são de uma incrível audácia, pois, apesar do mau estado, tanto das estradas quanto dos seus caminhões, enveredam por qualquer caminho. Sem ela, a economia brasileira estaria simplesmente paralisada”.
Nas boas estradas do Rio, de São Paulo ou de Minas, os caminhões circulam aos milhares todos os dias, mas, mesmo nas estradas de barro, mais distantes, sempre há um ou outro motorista que consegue passar. É hoje o mais precioso dos pioneiros.
Quando muito, o motorista deixa a rota mais curta e busca melhores condições de tráfego, visando ao menos desgaste do caminhão, embora com isso atrase o regresso ao lar. O retorno das grandes viagens sempre altera a rotina de casa. Vindo de “cima”, do Ceará ou de Pernambuco, traz queijo de coalho, tipicamente sertanejo, e “carne do sertão”. Vindo de “baixo”, do Rio Grande do Sul, o barrilzinho de vinho tinto é indispensável. Maneira de presentear o compadre, que freqüentemente acumula as funções de banqueiro. É o homem que, financeiramente, o ajuda na compra ou manutenção do veículo.
Quem viveu ou tem notícia do esforço caminhoneiro pelo crescimento econômico e também pelo desenvolvimento social do país encontrará comprovações de grande interesse.
O dionisíaco caminhão brasileiro, que já foi elemento civilizador, assume agora papel diferente, mas sem perder esse tipo de identidade, pois falar de Brasil é falar de brasis.
Jornal do Brasil (RJ) 11/10/2006