Quando meus olhos não falhavam, em noites de impiedosa insônia, eu apontava o telescópio para o céu. Mirava as nebulosas na distância, e o brilho antigo e novo das estrelas. Matéria de abandono, sintaxe e conjunção. Um repertório a cada nebulosa: o trânsito dos astros e o rumor de fundo. Eu colimava lentes, verbo e coração. E me perdia na fuga das galáxias, na espiral da Via-Láctea, reconhecida nas aldeias como Caminho das Antas. Cem bilhões de galáxias e quase o mesmo número de estrelas. Cifra assombrosa, incogitável. E, todavia, estranhamente próxima, se comparada à quantidade de neurônios. Carregamos um céu dentro de nós, o clarão da linguagem e das sinapses. Importa conjugar o transfinito, em patamares cada vez mais altos. E sem perder a humana condição. Lembro o convés do Raposo Tavares, quando subi o rio Negro, rumo a Novo Airão. Provei as extensões do Rio-Babel, a biblioteca viva da Amazônia, acervo do sistema Gaia, palimpsesto de múltiplos extratos (carbonífero e devoniano), a cuja coleção de obras raras correspondem quatrocentos bilhões de árvores. Quem sabe até – senão – o mesmo número de deuses? Estrelas. Árvores. Neurônios. As dimensões possíveis de um sistema. Como quem doma o Caos e faz uma defesa do infinito. Como quem sai do dicionário para a prosa, do arquivo aos metadados. Talvez, assim, a biblioteca de Babel, com alto brilho e densidade, seja a fornalha de uma estrela, volume líquido e gasoso, de livros vegetais e de xamãs, Apolo e Olorum.
Trata-se de um conceito universal, mosaico e labirinto: a geometria de Perec e Osman Lins. Talvez o delírio de Brás Cubas. Livros futuros, imaginários, Bolaño e Rabelais. E livros que podiam ter sido e que não foram. Suportes de papel ou nato-digitais, de verbo e de silêncio revestidos. Estrelas jovens e azuis. Ou mortas, cujo brilho não se apaga. A Biblioteca nasce de outro céu e de outra selva. É marca de um saber plural, sob o rigor da lógica do acréscimo. Lembra o famoso Hotel de Hilbert (do n + 1 às potências de números primos). E se mais mundo houvera, lá chegara. Não há, porém, limite algum. Somente o débito de espaço, pago a longo prazo. O mais do mundo aqui se encontra. A Biblioteca Nacional é dos mais belos ecossistemas do Brasil. Floresta de exemplos, natureza e cultura, memória social, que cada geração buscou guardar. Entre as bibliotecas do Oriente e do Ocidente, do Vaticano ou do Mali, todas subscrevem, sem hesitação, as palavras de Richard Bury: “O tesouro do conhecimento e da sabedoria, a que todos os homens aspiram, por instinto natural, supera em muito todas as riquezas do mundo reunidas; perto dele, as pedras preciosas se degradam, a prata se oxida e o ouro, areia fina, vira lama. Comparado ao seu esplendor, o Sol e a Lua são eclipsados, à sua doçura o sabor do mel e do maná tornam-se amargos”
Viajantes nos limites desse espaço, a bem de todos, para sempre inacabado. A biblioteca vive da soma dos tempos. Nutre-se de uma adição épica. Mais do que eterna, é sempiterna. Antes de ser lugar, é um conceito; antes de ser depósito, um sistema. Onívora, incontida. Seus muros se tornaram transparentes. Capítulo inovador, segundo Darnton, a “biblioteca sem paredes, acessível em toda a parte, contendo a quase totalidade do que se encontra nos acervos da cultura humana.” A Biblioteca Digital é um divisor de águas. Trata-se de uma conquista admirável. Precisamos ampliá-la, criando um robusto centro de dados, um centro de tecnologia da informação e comunicação. Cem milhões de acessos ano passado. A biblioteca é uma assembleia interminável, centro de cultura e difusão, que se renova com os leitores-cidadãos. Não há distância entre leitura e democracia. Não pode haver. A Biblioteca Nacional é um dos maiores bastiões da liberdade. Está no seu DNA, na vocação ecumênica, inimiga da censura, voltada aos metadados. Não admite a pós-verdade. Imune às fake News, Incapaz de rechaçar os próprios dados.
Eclipse do Sol e da Lua. Nosso maior tesouro e capital simbólico chama-se Biblioteca Nacional. A sexta cidade dos livros da Terra. A nossa mais antiga casa de cultura. Eis a razão pela qual a Biblioteca não é órgão de governo, mas de Estado; usa o plural, não se apequena em partes ou fração; não é trincheira ideológica, nem deve promover a parte contra o todo. Seu estatuto é a acolhida. Índices e motores de busca são lentes poderosas, que sondam a máquina do tempo e da leitura. Esta Casa possui 72 quilômetros de prateleiras. Seus hóspedes aumentam dia a dia. Não é pequena a taxa demográfica, que vai além de dez milhões. O mundo dos livros e o livro do mundo coincidem. Modelos de Universo inflacionário. Melhor dizendo: Multiverso. A travessia da Biblioteca é uma viagem terrestre e celeste: nas infovias, mapas e armazéns. Como disse J.L; Borges, bibliotecário de Babel: “Se um eterno viajante atravessasse, em qualquer direção, verificaria ao longo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se alegra com essa elegante esperança.”
Avalista de um horizonte generoso, não fragmenta seu tempo e discurso, não cancela a matéria-prima da alteridade. Não perde o contexto, o pano de fundo informativo, não quebra a comunicação, não abandona uma razão estrutural.
Universo conjuga todos os tempos. A nostalgia do todo não permite desidratar o presente ou sequestrá-lo. Seu algoritmo trabalha a favor da pesquisa e da emancipação. Seu ofício transparente apura o trânsito informático, a pertinência e o valor da esfera pública. Nenhuma concessão à infocracia. Os algoritmos desta Casa possuem uma finalidade virtuosa. Instrumentos de acessos. E de conhecimento radial. Tesauros, ontologias. A Biblioteca não perde seu caráter multicêntrico. Sociedade de iguais, centrada no viés do bem comum, na conjunção da diferença. Não se limita ao curto prazo. Namora a longa duração. O presente infinito não esgota suas forças. O passado distante não é exílio e o futuro pode-se apressar. Projeto de igualdade, construção de paz e saber. O papel do bibliotecário se renova, sempre mais estratégico, num um paradigma aberto, segundo a Bibliotech, de John Palfrey, nova mundivisão e formas de pesquisa. Outros regimes de memória e mídia. A biblioteca anfíbia, virtual e analógica, duplicou as tarefas da preservação. Se antes era a química do papel e o ambiente – umidade, acidez, tinta ferrogálica –, agora são hackers, perda de dados, migração de tecnologia. O delicado olhar entre átomos e bits. Porque o digital não é eterno e imutável. A inteligência do processo deverá contemplar as novas materialidades. A nossa meta é a conquistar do espaço. Mais apetite à fome de guardar. Protocolos internacionais de cooperação. Transmitir o conhecimento entre gerações de profissionais que formam esta Casa. Levar a Biblioteca ao seio da República. Promover seminários nacionais e internacionais, mostras, publicações. Leitura em todos os quadrantes. E recuperar o acervo de obras perdidas.
Tempo de diálogo, com o Brasil e o Sul Global. A delicadeza como princípio ativo. A diplomacia do livro. Ouvir os agentes públicos da Casa, avalistas da memória, embaixadores do futuro. Ativos e aposentados. Permitam citar Zé Basto, cliente da Casa das Palmeiras: “O livro deve entrar no coração”. Frequentei bibliotecas mundo afora. Antes da crise sanitária, fui a aldeias e comunidades, escolas prisionais e terras quilombolas. Dou testemunha do gênio de nosso povo, diante da riqueza das dificuldades e a escassez de recursos. Todos imersos no cosmos – da língua materna, da biblioteca –enquanto organismo vivo, heterodoxo. Continuarei a visitá-los, sempre que possível. O presidente da Casa precisa testemunhar um sentimento solidário e democrático, a partir da república dos livros. A Biblioteca deve ser o espelho do país. Guardar todas as línguas e cosmogonias. Ninguém pode ficar de fora. A Compadecida e Diadorim, Paulo Honório e Policarpo, grafites urbanos e literatura de cordel, Lampião no Inferno e a massa flutuante de esperança. Espelho. Verbo. Imagem. Travessia. Para a terceira ou quarta margem fluvial. Futuro do pretérito e agora do passado, buscando diálogos: Sócrates e Ọ̀rúnmìlà, Isabelle Stengers e Davi Kopenawa. Harpas sonoras do sul.
Antes do convite da ministra Margareth Menezes, planejava regressar ao Brasil para ficar dois meses navegando no Amazonas, com as gramáticas tikuna e nheengatu. Eu me via entre os volumes da selva, a visitar caciques nas aldeias. E, no entanto, aqui me vejo, na floresta dos livros, na missão de reconstruir o diálogo e o respeito da diversidade. Meu telescópio é o acervo. Essa é a minha constelação, meu atlas celeste. E a partir dessa confederação de luz, abrir um dos capítulos essenciais da história: aperfeiçoar os instrumentos da democracia e reconstrução do país.