Num museu em Florença (Galleria dell'Accademia), está a série de esculturas inacabadas, obras de Michelangelo, o mármore ainda bruto não de todo cinzelado, esboçando um conjunto monumental de escravos.
Segundo os entendidos, eles comporiam o túmulo de seu protetor, o papa Júlio 2º, túmulo também inacabado, do qual só nos ficaria o assombroso "Moisés", que hoje está na igreja de São Pedro in Vinculis, em Roma. Tanto para o papa como para o artista, o túmulo deveria ficar como a principal herança da Renascença para a humanidade.
Pulo da Renascença para Fellini, que fazia caricaturas para uma revista e sonhava filmar uma história de Dino Buzzati, com o estranhíssimo título de "A Viagem de Giuseppe Mastorna". Foi processado pelo produtor, Dino De Laurentiis, porque nunca rodou uma única cena.
Isso não impediu que Fellini fizesse outros filmes, inclusive "Oito e Meio", que conta exatamente o drama do artista que persegue uma grande obra, começa a embromar o produtor e exige locações absurdas, como uma praça medieval com um Boeing no meio, e algumas instalações que parecem rampas de foguetes espaciais. Ele não acredita que a produção consiga o absurdo, mas o produtor arranja dinheiro e leva o diretor para ver o cenário e dar uma entrevista à imprensa internacional.
O diretor desmaia ao ver o que foi feito, tem de dar alguma explicação aos jornalistas. "Eu paguei um dinheirão a todos eles, diga qualquer coisa sobre o filme, invente!". O produtor está furioso. Uma repórter alemã grita para os jornalistas: "Ele não tem nada a dizer!".
"Oito e Meio" é em parte o que restou de "Giuseppe Mastorna": um filme sobre um filme que jamais seria feito. Na última entrevista que deu, Fellini confessa que todos os seus filmes são pedaços do projeto inacabado, projeto que ele perseguiu por toda a vida sem conseguir realizar.
Pulo agora para o "Doutor Fausto", de Thomas Mann, um tema tipicamente germânico; antes de Goethe fazer o seu Fausto, já havia diversos Faustos publicados na Alemanha. O autor de "A Montanha Mágica" fez de Adrian Leverkühn um músico perseguindo a sinfonia perfeita e que vende a alma ao diabo para consegui-la. O máximo que obtém é contrair sífilis com uma prostituta.
Nelson Rodrigues sofreu a vida toda porque queria fazer um romance de 900 páginas, que fosse maior do que "Guerra e Paz", de Tolstói. Sua genialidade chegou a "Vestido de Noiva", a "Doroteia", a "Bonitinha, mas Ordinária". Com sua indiscutível importância de maior poeta dramático da literatura nacional, não chegou lá.
Outro que nunca chegaria lá fui eu mesmo. Aos 20 anos, ouvi pela primeira vez, na catedral de Siena, a "Messa por Papa Marcello", obra de Pierluigi da Palestrina, que com ela iniciou a música moderna, antes restrita a duas dimensões (ritmo e melodia). Palestrina criou a terceira dimensão, o contraponto, fazendo na música o que Giotto fizera na pintura.
Desde aquele dia, pensei em fazer um romance com esse título. O tempo foi passando, fiz romances até demais. Na altura do terceiro, a editora de Ênio Silveira anunciou o seguinte: "Próximo lançamento: 'Messa por Papa Marcello'".
Verdade que tentei. Cheguei a esboçar uma pequena cena que escrevi na hora, a pedido do Arnaldo Bloch, que a publicou em "O Globo" já faz tempo. O mundo não acabou, eu também ainda não acabei, mas estou na reta final.
Fiz outros romances e cheguei a pensar em Adrian Leverkühn, invocando o diabo para vender a alma em troca da sinfonia que pretendia.
O diabo é que o diabo não me levou a sério. Quando criança, tentara vendê-la em troca de uma torta de banana. Imaginei Satanás trazendo-me a torta, quentinha, untada de manteiga. O Pai das Trevas achou mau negócio dar uma torta em troca de uma alma que um dia seria dele.
O fato é que, toda vez que ligo o computador, penso na torta, em Adrian Leverkühn. Por sorte, até hoje não contraí sífilis nem consegui a sinfonia desejada. E, como o tempo continua passando com suas injúrias, estando eu cada vez mais próximo do definitivo pendurar as chuteiras, descubro a única verdade a meu respeito: não tenho nada a dizer. Mas assim mesmo, digo.
Folha de São Paulo, 4/5/2012