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A obra-prima inicial

 

O PRIMEIRO contato com "Memórias de um Sargento de Milícias" provoca surpresa. Em primeiro lugar, pela linguagem, a língua tal como é falada entre nós. Surpresa também pelo tratamento da história em si. Surgia afinal o primeiro anti-herói de nossa literatura. Chegavam à cena os primeiros tipos que delineariam a ficção nacional daí em diante, como o padrinho do personagem principal (que Machado de Assis, José Lins do Rego, Jorge Amado e muitos outros copiaram e copiam ainda), além da comadre e do major Vidigal.




Manuel Antonio de Almeida evitou a banalidade dos modelos consagrados. Fez entrar o homem em nossa literatura. Em seu livro não há herói nem vilão. Há o Leonardo Pataca, que deu um beliscão na saloia infiel, foi pai, foi traído, reincidiu, sofreu, amou. Morreu.




Há o padrinho, que se apropriou de herança alheia, com a qual "arranjou-se" naquele fabuloso capítulo que é "O Arranjei-me do compadre". Apesar de ladrão e péssimo caráter, quer tornar o afilhado padre, amando-o, sacrificando-se por ele. Há sobretudo a comadre -e aí temos, ao lado de Macunaíma, de Mário de Andrade, dois dos melhores tipos da ficção nacional.




Dos 5.000 ou 6.000 personagens criados pela imaginação dos escritores brasileiros, nenhum excede, na perfeição das linhas, no apoio da realidade, essa figura que escorre sem nome pela história, sendo apenas a comadre: "Devemos prevenir o leitor que o caso nas mãos do cego estava praticamente ganho. E só não estava definitivamente ganho porque do outro lado estava a comadre". Embora em pólo oposto, essa comadre forma com Capitu, de Machado de Assis, o que de melhor a pena de nossos romancistas fez em matéria de mulher.




Manuel Antonio de Almeida foi também pioneiro na paisagem urbana que com ele penetra fundamente em nossa ficção. E mais: como acentuou Marques Rebelo, foi ele quem "pela primeira vez escreveu aproximadamente como se fala no Brasil".




Ronald de Carvalho observava em seus escritos que Almeida "não cortava as dificuldades com meia dúzia de lugares-comuns dissaboridos, ia ao encontro delas, atacava-as de frente, sem rodeios".




Procurar as influências por trás de "Memórias de um Sargento de Milícias" é fácil. Todo o picaresco espanhol e, acima de tudo, "As Aventuras de Tom Jones, Um Enjeitado", de Henry Fielding, autor que também é comumente citado como uma das maiores influências em Machado de Assis.




Por sinal, Almeida foi amigo e protetor de Machado. Apesar de médico, exerceu o cargo de diretor da Imprensa Nacional e ali arranjou o primeiro emprego (como tipógrafo) para o futuro autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas".




Morrendo moço, aos 31 anos, num naufrágio perto do litoral de Campos (RJ), Almeida também é arrolado entre as influências sofridas por Machado.




Foi feliz Marques Rebelo ao acentuar a ausência de paisagem real em nossa literatura, sendo que em Machado, como acentua a crítica até hoje, ela é inexistente. Gilberto Freyre explicou que o grande bruxo não abria as janelas para não ver o morro fatal em que nascera.




Ausente em nosso maior escritor, a paisagem tornou-se feérica e irreal nos demais romancistas, as selvas eram tão luxuosas que mais pareciam cenários de operetas. No chamado romance urbano, todos os coxins eram de seda adamascada.




Até que surgiu Manuel Antonio de Almeida completando e sublimando Debret: nossos escravos, nossos quiosques, nossos postes de iluminação a óleo de peixe, o pelourinho, a casa da cadeia pública, as mulheres de mantilha, as procissões, a via-sacra, os fogos no Campo dos Ciganos.




E Debret ficou sendo, mesmo sem o saber e até hoje, o melhor ilustrador para o romance de Almeida, da mesma forma que os desenhos de Hogarth deram vida aos personagens e cenários de "Tom Jones".




"Memórias de um Sargento de Milícias" foi teatralizado para um espetáculo realizado no largo do Boticário, no Rio. Foi musicado em forma de ópera por Francisco Mignone. Foi até enredo de uma escola de samba (e campeão) num carnaval carioca.




Foi também o livro que marcou minha iniciação, influenciaria a minha vocação e grande parte do meu obscuro fazer literário. Texto que se tornou nosso primeiro clássico, mais amado do que estudado por todos os que a ele chegam.


Folha de S. Paulo (SP) 1/8/2008