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O Vietnã e a guerra excessiva

 

O Vietnã avulta como nação com seus quase 100 milhões de habitantes e com uma determinação multissecular de sua individualidade, exposta desde as invasões chinesas e japonesas, na sua obstinada identidade cultural.

Destaca-se mais ainda pela firme liderança na modernidade dos após-guerras, no que se contrapõe Ho Chi Minh a Mao Tsé-Tung, num comando histórico, sem qualquer esgarce ou contestação.

O rigor da economia socialista acompanha toda a força da memória, cultivada, sobretudo, no século passado, com a luta contra o colonialismo francês, definitivamente esmagado na batalha de Dien Bien Phu, em 1954.

Sobreveio-lhe a brutalidade ímpar da invasão americana, acompanhada dos mais hediondos bombardeios. Expunha-se o país, como dito pelo general Curtis Lemay, aos desfolhantes e ao agente laranja, a mutilar os vietnamitas, até hoje a exibir as deformidades e as violências desfiguradoras da geração da guerra e da subsequente.

Os museus vietnamitas são, por isso mesmo, os da memória da guerra fundadora da identidade emergente do país, juntando as fotografias das monstruosidades, do aparato de guerra. Há uma macabra coreografia das bombas e dos tanques ocupando os jardins dos centros culturais.

O país de Ho Chi Minh poderia ser também chamado de a nação das 11 mil noivas, na réplica às 11 mil virgens, em torno de Santa Úrsula, dos calendários cristãos.

É inédito o choque visual de Hanói, em plena "wedding season", com noivas em todas as esquinas de monumentos célebres ou templos religiosos, sentadas nas calçadas a esperar o momento em que os fotógrafos encontrem o ângulo para o flash definitivo. Um enxame de roupas brancas, a maioria deles na conformidade do sacramento cristão.

Não nos esqueçamos de que, hoje, 30% do Vietnã continuam católicos. Sucedem-se as fachadas de edifícios rematadas pelas estátuas da Virgem nas varandas.

Muito mais do que a antiga Saigon, hoje Ho Chi Minh Ville, Hanói mantém o urbanismo novecentista francês das praças, assombreadas pela volúpia dos verdes tropicais e dos lagos. A paternidade fundadora de Ho Chi Minh vai ao ensino da educação prática, saída das escolas para a escuta dos pleitos dos mais desfavorecidos.

Subestimamos, talvez, a importância do Sudeste Asiático no jogo emergente da globalização não hegemônica. Nela, o Vietnã é a cunha da autonomia da península, contra o abraço de Pequim, frente ao Laos e ao Camboja. É o país, severo na sua resistência histórica, o bastião contra os consumismos fáceis que possam rondar o progresso do welfarismo socialista.

A lição do "tio Ho" não é a da acomodação ao já logrado, mas da habituação aos reclamos e às exigências de um "povo à obra", à vista de todos os seus músculos, e dentro da dureza dessa prospectiva, educada por uma economia de guerra permanente sob a qual se construiu a nação vietnamita.

Folha de S. Paulo, 20/12/2012