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O viaduto e sua circunstância

 

Pessimista por ofício e gosto, sempre imagino e espero coisas piores, que geralmente acabam me acontecendo. Já vi tantas desabarem sobre os outros, e sobre mim mesmo, que nada me espanta nem mortifica. Tomo cuidado, pisando de leve na vida e no mundo.


Até agora, nunca passei fome nem morei embaixo de um dos nossos viadutos, que, aliás, são muitos aqui no Rio. Mesmo assim, não consigo passar pelo viaduto aqui perto de onde moro, na Lagoa. Um viaduto comum, parecido com todos os demais viadutos, dá acesso ao túnel Rebouças, tem a vantagem de ser o mais próximo.


Todas as manhãs, não passo por cima dele, mas ao lado. E todas as manhãs olho para ele, examinando-o, vendo se ainda há vaga para mais um: eu e meus poucos trecos. Reservo mentalmente o lugar em que me abrigarei e me preocupo quando o vejo ocupado, torço que seja provisoriamente.


Tem outra vantagem. Além de mais próximo, de suas entranhas poderei desfrutar a mesma paisagem da Lagoa que agora me deslumbra, o pôr-do-sol sangüíneo e fatigado e, em tempos natalinos, como os de hoje, a árvore de Natal com suas luzes e seus anjos.


Sou prevenido e a vida me tornou mais prevenido. Num tempo em que fui preso seguidamente, andava com uma pasta contendo as coisas essenciais a que um preso se permite. Mantenho um kit de sobrevivência, não na selva, mas sob um viaduto. Escova e pasta de dente, sabonete, algumas aspirinas, uma tesourinha de unha, uma caixinha de band-aid para os primeiros socorros, coisas assim.


Para ilustrar o espírito, nada de Bíblia nem de Montaigne. Levarei alguns livrinhos do Carlos Zéfiro para minhas noites solitárias. E, como devoto de santo Antônio, uma pequenina imagem do santo que comprei em Padova e sempre acompanha o agnóstico que mais reza neste mundo.

Assim municiado, não temo o viaduto nem a sua circunstância.




Folha de São Paulo (São Paulo) 08/12/2004

Folha de São Paulo (São Paulo), 08/12/2004