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O toque de Sadim

 

Bolsonaro tem o dom de Sadim, que, ao contrário de Midas, faz com que destrua tudo que toque. Mas não é um dom inato, é fruto de um trabalho árduo para tentar destruir as instituições nacionais, com o objetivo de não ter obstáculos a sua prepotência inata.

O presidente, eleito pelo voto direto em urna eletrônica, tenta desde sempre desmoralizá-la. Já disse que ganhou a eleição de 2018 no primeiro turno, agora diz que, se perder, terá sido fraude e quer o voto impresso. Como se, no tempo do voto na cédula de papel, os casos de corrupção tivessem sido mínimos.

Existem desde o “voto a bico de pena”, que só acabou em 1930, justamente com a criação da Justiça Eleitoral, que instituiu o voto secreto, mas não à prova de fraude. O “voto de cabresto” vigorou por muito tempo, e os casos de corrupção só deixaram de ser tema de debate político a partir de 1996, com a introdução da urna eletrônica. Voltaram agora, com o retrocesso proposto por Bolsonaro para desmoralizar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O Supremo Tribunal Federal (STF), por mais polêmicas e criticáveis que algumas decisões suas sejam, é uma referência institucional histórica, a última instância da Justiça, a que pode errar por último, como já dizia Rui Barbosa, a ressaltar que qualquer decisão sua tem de ser respeitada, mesmo que eventualmente algum ministro não seja respeitável.

O Congresso é outra instituição que Bolsonaro tenta desmoralizar, e o faz ao aderir aos hábitos e costumes de uma maioria de ocasião, que troca o apoio por benesses. O leilão reverso que faz com os partidos políticos para decidir a que legenda se filiará até outubro para concorrer à Presidência da República é uma prova de seu desprezo pela política partidária. Já foi filiado a dez legendas e negocia os fundos partidário e eleitoral com base em seu potencial de votos, que deu em 2018 ao nanico PSL a segunda maior bancada da Câmara.

O Tribunal de Contas da União (TCU), um órgão de assessoramento do Congresso, também é desmoralizado por Bolsonaro, assim como a CPI da Covid, que ele diz ser formada por “sete bandidos”, justamente a bancada oposicionista. A imprensa é outra “inimiga” a destruir. Tenta desacreditá-la não apenas com ofensas de viva voz em entrevistas e nas suas lives, mas fomentando blogs e sites que espalham fake news.

Por fim, está conseguindo fazer que as Forças Armadas, especialmente o Exército, se desmoralizem no contato com seu governo. A participação de generais, da ativa e da reserva, em funções civis faz que os desacertos do governo reverberem na imagem dos militares. Agora, surgem nomes de diversos militares, na estrutura militarizada do Ministério da Saúde montada pelo general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, nos escândalos da compra e venda de vacinas contra a Covid-19.

A ponto de um cabo da Polícia Militar de Minas, nas horas vagas atravessador informal de compras de produtos médicos, Luiz Paulo Dominguetti, dizer que, ao receber a proposta de propina de US$ 1 por dose de uma suposta partida de 400 milhões de doses da Astra Zeneca, não ter podido fazer nada porque estava na mesa, participando da negociação, um oficial superior, o tenente-coronel Marcelo Blanco, até recentemente do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, que abriu uma empresa de venda de medicamentos. Um conflito de patentes que distorce a real validade da hierarquia militar, uma das pedras angulares da disciplina nas Forças Armadas.

Por fim, surgem agora áudios que colocam Bolsonaro no centro do esquema de “rachadinhas” em seu gabinete de deputado federal, o que fragiliza ainda mais sua posição, embora não tenham efeito prático, pois as transações ilegais teriam sido realizadas fora de seu mandato presidencial. Mas é possível pedir uma investigação, o que também enfraqueceria muito o presidente. É uma atividade ilegal, imoral — e não são poucos os parlamentares que usam esse esquema. Enfraquece a posição dele de querer se mostrar um político novo, sério, probo, que não comete falcatruas. Demonstração de que a imagem que vendeu, comprada por 57 milhões de brasileiros, nunca existiu.

O Globo, 06/07/2021