O assassinato de Benazir Bhutto marcou neste fim de ano uma nova face do terrorismo, típico da “civilização do medo” em que entramos no novo século. Na tragédia emergem interrogações inéditas quanto a esta conduta extrema, sua previsibilidade, sua autoria e o que se pode esperar deste universo hoje tão remoto a qualquer cultura da paz.
O desmentido formal da Al-Qaeda quanto à responsabilidade pelo atentado, mostrou o quanto a prática devastadora não vem de uma fonte única, nem de uma conspiração orquestrada para desestabilizar o mundo contemporâneo. Seus possíveis autores escapam de uma rede descentralizada de terror, ou suscetível de se vincular à catástrofe continuada, depois da derrubada das Torres de Manhattam. A polícia paquistanesa fixou pistas telefônicas, conduzindo a Baitullah Mehsud, outro radical na região. Mas este também não assume o massacre de Benazir. A permanência do vácuo só faz exasperar a inquietação ainda maior, do que sejam o perigo dos homens-bomba, no extremo da agressão anônima repetida e, sobretudo, muda no seu recado.
O sinete da “civilização do medo” é a desta radicalidade mórbida da ruptura-limite com o outro, ou a sociedade, que vitimiza sem qualquer freio, e se transforma em horrendo gesto sacrificial. Não há como, e facilmente, associar os homens-bomba, sempre, ao desequilíbrio mental e à simples loucura exterminadora. O gesto é portador de um sentido que se torna, nesses casos, de uma monstruosidade subjetiva, confinada ao instante, sem deixar a marca ou o epitáfio da proeza, nem a sua fruição doentia, típica dos criminosos exibicionistas, a sobreviver até a hora do cadafalso.
O assassino de Benazir prolongou o fogo da pistola, flagrado pelas câmaras, pela detonação das bombas amarradas no próprio corpo. No instante cronometrado do horror, marcou a vítima e assinou a seguir o seu abate na explosão devastadora. Ficou nítido como recado a performance e dentro das novas liturgias da morte dos homens-bomba, a trazida do radicalismo à noção do duplo extermínio que passa a implicar. Executar, inequivocamente, antes e imolar-se na seqüência, sem deixar restos.
A mensagem continua ambígua, não obstante o alvo especificamente eleito. O impacto final da supressão de Benazir não interessaria ao governo, na responsabilização pelo desatino, nem às demais oposições, sem qualquer perspectiva de se beneficiar da rivalidade com a líder abatida. Permanece o quadro da motivação no torvo protagonismo do homem-bomba.
O acionamento do estopim é do carrasco de si mesmo, porque executor do outro. Pode chegar nessa última desolação a este estado de choque em que todo “não-eu” se torna uma ameaça. São os tempos desta “civilização do medo”, em que se exasperam as desconfianças, lastreadas no universo último do poder e da dominação de hoje, tão extremados quanto a auto-supressão que os ratifica? E por onde começa uma verdadeira cultura da paz, tanto emerge, após o sacrifício de Benazir Bhutto, o silêncio dos seus assassinos, e até quando, e dentro do exílio sem volta do mundo dos aparelhos e das máquinas ideológicas?
Jornal do Commercio (RJ) 4/1/2008