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O surpreendente Padre Vieira

 

Apior tsunami da História européia ocorreu a 1 de novembro de 1755, quando, depois de um terremoto, ondas gigantescas invadiram Lisboa, uma catástrofe que matou 60 mil pessoas. Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, homem forte do governo português, mostrou então seu gênio organizador e administrativo. A frase famosa - “Vamos enterrar os mortos e cuidar dos vivos” - foi o mote para iniciar, de imediato, o auxílio às vítimas e a reconstrução da cidade.


Quase dois séculos antes, em 1558, um outro desastre havia ocorrido, este político e emocional: desaparecia, na batalha de Alcácer-Quibir, contra os mouros, o rei Dom Sebastião, conhecido como “O Desejado”, o depositário das esperanças lusas de recuperação de um passado glorioso. Nasceu daí uma expectativa quase messiânica: um dia o rei voltaria para devolver a Portugal a antiga grandeza.


Duas atitudes diferentes. Num caso, a espera pelo milagre; no outro, o realista, e autoritário, esforço de recuperação. Estes dois extremos caracterizam uma tradição cultural lusa, personificada na extraordinária figura do Padre Antonio Vieira. Nascido em 1608, em Lisboa, de origem modesta, ainda criança seguiu para o Brasil, onde o pai, funcionário, tinha conseguido emprego. Estudou em escola jesuíta; era um grande leitor das Escrituras (sobretudo, e significativamente, dos textos proféticos), escrevia muito bem em português e dominava com facilidade o latim. Precoce, aos 18 anos foi nomeado professor de retórica no Colégio de Olinda. Decidiu-se pelo sacerdócio, mesmo contra a vontade paterna.


Quando da invasão holandesa da Bahia, os jesuítas fugiram para o sertão. Vieira refugiou-se numa aldeia indígena; lá aprendeu a amar e respeitar os índios, de quem será defensor intransigente. Aos 33 anos regressou a Portugal; os sermões que profere granjearam-lhe em Lisboa a mesma fama que já alcançara no Brasil. Amigo e conselheiro do rei João IV, traçou um plano de recuperação econômica do país, baseado no desenvolvimento mercantil, na criação de um banco e de duas companhias comerciais, segundo o modelo holandês. A idéia era suficientemente inovadora para ser combatida pela nobreza receosa da perda de privilégios; mas o que lhe valeu mesmo o ódio de muitos inimigos foi a abolição das distinções entre cristãos velhos e cristãos-novos: na prática, drástica restrição dos poderes da Inquisição.


Esta face revolucionária de Antonio Vieira é o tema de Arnaldo Niskier em “Padre Antonio Vieira e os judeus”. Resultado de longa pesquisa, o texto - sintético e de agradável leitura - representa importante contribuição para o entendimento da fascinante figura que foi Vieira. O que teria levado um sacerdote cristão a adotar posições tão ousadas? Niskier nos mostra que a resposta é tríplice.


Em primeiro lugar, trata-se de uma visão econômica e política modernizadora e globalizante. Vieira sabia que Portugal, país pobre e esgotado pela guerra contra a Espanha, precisava desesperadamente de investimentos, e sugeriu aquilo que é a atual receita para os países emergentes: atração de capitais. Estava pensando especificamente nos cristãos-novos dos Países Baixos, que, fugidos de Portugal, ainda mantinham laços com seu país de origem.


Vieira acreditava nas profecias de Bandarra


A segunda razão era a solidariedade com um grupo que, como os índios, fora perseguido e dizimado. A defesa que o jesuíta fazia dos judeus tornou-o ainda mais suspeito: alguns, como mostra Niskier, até achavam que fosse cristão-novo. Finalmente havia aquilo que poderíamos denominar de “espírito milenarista”: Vieira, como muitos portugueses, acreditava nas profecias do sapateiro Bandarra, que previam para Portugal um futuro glorioso, nele incluída a volta de Dom Sebastião. Ora, na Antigüidade nenhum grupo foi tão milenarista quanto os hebreus, como o demonstram os textos proféticos da Bíblia. Tratava-se, portanto, de uma união de expectativas: o milenarismo judaico somado ao português.


Em matéria de obtenção de recursos, Vieira não ficou só na retórica. Enviado pelo rei, viajou secretamente para a Holanda, onde fez contato com a comunidade judaica (era até amigo de destacados rabinos). Os resultados não foram muito expressivos; uma Companhia de Comércio do Brasil chegou a ser constituída, sem grande repercussão. Pior, Vieira pagou alto preço por suas iniciativas. Cometeu o erro de propor que, para terminar com as invasões holandesas no Brasil, Portugal comprasse Pernambuco aos holandeses. Subestimava assim a capacidade da resistência portuguesa aos invasores, o que sem dúvida enfraqueceu sua posição e tornou-o vulnerável: o longo braço da Inquisição acabou por alcançá-lo. A 23 de dezembro de 1667, o tribunal do Santo Ofício dita a sentença condenatória do Padre Antônio Vieira: “é privado para sempre de voz ativa e passiva e do poder de pregar, e recluso no Colégio ou Casa de sua religião, que o Santo Ofício lhe ordenar, e de onde, sem ordem sua, não sairá”. No ano seguinte é libertado. Está, contudo, proibido de tratar, em seus sermões, de temas como cristãos-novos, profecias, Inquisição. Até que o Papa, num breve, isenta o Padre Antônio Vieira “perpetuamente da jurisdição inquisitorial”.


A sua saúde, sempre frágil, deteriora-se, e ele continua sob suspeição: o Papa Inocêncio XI revoga o breve do seu antecessor, a Inquisição prossegue em sua campanha contra ele. Aos 80 anos, doente, enfraquecido pelas constantes sangrias a que é submetido, é nomeado Visitador Geral dos jesuítas no Brasil. A 18 de julho de 1697 morre esta extraordinária figura de intelectual, visionário e lutador, que resumiu sua trajetória na frase muito apropriadamente escolhida por Arnaldo Niskier para fecho de seu trabalho: “As coisas grandes não se acabam de repente; hão mister de tempo e todas têm seu tempo.”,


Padre Antonio Vieira e os judeus, de Arnaldo Niskier. Editora Imago, 160 pgs. R$ 30


 


O Globo - Caderno Prosa e Verso - (Rio de Janeiro) 22/01/2005

O Globo - Caderno Prosa e Verso - (Rio de Janeiro), 22/01/2005