O QUE é a liberdade de trabalho reconhecida pela Carta Magna? Igual para todos, ela se assegura pela disciplina que a lei estabeleça. A lei maior garante à sociedade a competência dessa prestação pelo aperfeiçoamento incessante desse “saber fazer”, sem o qual não se pode falar em civilização ou modernidade.
Espanta a declaração recente do ministro Gilmar Mendes, relator de acórdão do Supremo, de que só se regulamentam as condutas de saber cientifico, ficando as demais ao doce espontaneísmo do “bom selvagem”, defendido por Rousseau. Só quando entra em causa o risco social ou ameaça à vida -continua o magistrado- é que se impõe a disciplina da profissão.
Mas é exatamente no caso do jornalista, que quer liberar de todo controle, que aí estão os atentados à imagem, os crimes de imprensa, num perene potencial de ameaça ao cidadão. A visão dominante do Supremo, no disciplinar a matéria, entende que possa haver trabalho irrelevante quando todo “saber fazer” interfere, transforma, mas, sobretudo, melhora a vida coletiva. E o próprio mundo do mercado já se preveniu contra todo atravessador de artes, mesmo que possa ser um bugre genial.
Não há objetivamente amadorismo de trabalhador no que a mercadologia já se antecipou no cobrar a presença férrea da competência. Madame, no tratamento de seus cachorrinhos, não abre mão dos galardões dos veterinários. E é talvez a atividade vista como o ápice do frívolo, qual a da moda, a que mais se subjuga à ditadura das grifes e da fé de ofício feroz de seus prestadores.
Afinal, no preciso texto da lei, o que é trabalho, ofício ou profissão que escape do condicionamento por uma obrigatória melhoria? O amadurecimento da liberdade pela nossa consciência cívica não foge ainda, como se viu na decisão, de uma subcultura da excelência espontânea a que faria jus o “bom selvagem” escapado da sociedade organizada. A garantia do direito ao trabalho não é obscurantista, mas tem, como correlato, o dever da competência. O interesse coletivo não é o do resguardo contra perigos, mas o do incentivo permanente ao avanço intrínseco de toda atividade coletiva. A Carta não define o que seja “trabalho”, nem “capital”, nem “liberdade”, mas os vê todos, sempre, como concorrendo ao bem comum à sua volta.
A importante decisão do Supremo abre caminho, sim, para a denúncia do corporativismo impante em nosso meio, no outro extremo do direito apregoado à selva selvagem do trabalho clandestino. As ordens profissionais terminam por entorpecer o sentido inovador e mudancista das técnicas e dos saberes de uma geração, que acabam no estrito resguardo do seu estado atual da arte. Entre a sociedade e o Estado, a Carta do dr. Ulysses não atentou ao risco das corporações, vistas sempre como uma inócua extensão dos direitos associativos.
Que tem a ver limitação de mercado com direito à formação superior? Como podem as corporações arbitrar o quantitativo das formações de advogado, por exemplo, numa prerrogativa que é estritamente do campus e da liberdade de ensinar e expandir-se que lhe assegura a Constituição? Ficará, talvez, a decisão do STF como acórdão “leading”, não pelo arcaísmo da defesa do “bom selvagem”, mas pelo pluralismo de uma prospectiva, no reconhecer, fora de códigos da hora, essas regras de um bem fazer, sem as quais não respiramos e, de fato, desimpedimos o futuro.
Folha de S. Paulo, 7/7/2009