De repente, não mais que de repente, o Brasil holandês nos entrou pela porta adentro, pelos olhos adentro, pela emoção adentro. A verdade é que, para o brasileiro em geral, essa presença sempre existiu, representada pela figura de Nassau como elemento instigante de nosso imaginário. Ali tem estado ele, há 350 anos, uma parte integrante da história do País, oferecendo idéias e provocando muitas e variadas perguntas.
Teria sido melhor uma predominância holandesa naquele trecho de nosso território? Poderiam os soldados de Nassau ter ocupado outras regiões do Brasil, com o risco de perdermos nossa unidade e não existir um país com as dimensões atuais?
O que aconteceu com a América espanhola acabaria ocorrendo facilmente conosco. Do Sul do Chile ao Norte do México surgiriam mais de 15 países de língua espanhola, o que nos leva a acreditar que a presença da Holanda no Nordeste brasileiro poderia ter sido o início do esfacelamento do Brasil tal como o conhecemos hoje.
Considerações como essa não invalidam a realidade: a de que a Holanda contribuiu em alguns aspectos de nossa formação para a existência, no Nordeste, de uma tendência para as artes plásticas e para certo gosto pela pompa nos atos oficiais. Além disso, ficou-nos o romantismo da presença de um príncipe de verdade em nossas terras, cercado por uma corte que tinha amor ao protocolo - o que só viria a se repetir, em grau maior, mais de 150 anos depois, com a permanência do príncipe regente e futuro rei dom João VI no Rio de Janeiro.
Este livro, produzido por uma editora que busca o "bom texto", fazendo jus ao seu nome, vem mostrar-nos o Brasil de Nassau numa série de dez narrativas que, mesmo sendo ficção, fixam realidades. Em livro sobre romances, publicado há muitos anos, usei o título de "A verdade da ficção", pois a mim me parece que um romancista pode captar ângulos insuspeitados de um acontecimento real que a historiografia não haja conseguido entender. A batalha de Waterloo vista por Fabrício em "A cartuxa da Parma", de Stendhal, e a luta de Napoleão contra Kutusof no caminho de Moscou em "Guerra e paz", de Tolstoi, têm uma direitura de imagens que um historiador puro raramente alcança.
Há uma verdade na ficção. Uma verdade oposta ao convencionalismo das verdades estabelecidas que, protegendo o homem contra a nudez das novidades e a solidão dos avanços, também podem matar nele a inteligência da realidade, a alegria da experiência e o sentido da dignidade essencial do ser humano. Essa verdade, íntima e jovem, que a ficção contém é a matéria, a um tempo dura e maleável - e durável - sobre o que trabalham os inventores e executores de romances e da ficção em geral.
As 10 narrativas deste volume promovem uma reconstrução do Brasil holandês, com Nassau à frente. Antes de comentar os trabalhos aqui reunidos, desejo chamar a atenção para um europeu de então que se tornaria famoso como defensor de um novo pensamento filosófico do homem: Descartes. Era ele amigo de Nassau que, em cartas hoje preservadas na Holanda, convidou o filósofo para vir ao Brasil com ele.
Pensando em criar uma civilização nos trópicos, Nassau tentou reunir um universo de pintores, construtores e especialistas em várias áreas, e não se esqueceu dos filósofos. Fazer perguntas é vezo do ser humano. Façamo-las. De que maneira reagiria Descartes a um ambiente ainda primitivo, como o Brasil da época? Encontraria aqui meios de levar à frente a obra que na Europa conseguiria mais tarde fazer? Em suma, seria feliz na vida que levasse no Nordeste brasileiro?
Antes de vir para o Brasil, manteve Nassau contato com Spinoza, tendo havido pesquisas que descobriram cartas que o filósofo trocara com o futuro chefe do Brasil holandês. Adotara a Holanda uma posição libérrima em relação aos descendentes de Abraão, ao mesmo tempo em que estimulava um pensamento livre que atraiu, inclusive o nosso Antônio Vieira que freqüentou centros de cultura judaica e procurou ter discussão com o rabino Bem-Israel sobre a moral cristã e a moral do antigo testamento. No Brasil, sob a égide dessa mesma e poderosa liberalidade holandesa, se instalaria a sinagoga tida como a primeira das Américas.
Desejou realmente Nassau transformar o Nordeste brasileiro num reino à parte, de que ele viria a ser rei? Na realidade, tendo trazido artistas como Franz Post e Eckhout, e trabalhando para dotar a Nova Holanda de uma capital condigna, dava a entender que podia ser esse um plano em que trabalhava.
As narrativas que se reuniram neste volume fazem pensar. Levam-nos a tentar avaliar o que poderia ter sido o Nordeste brasileiro naquela época e o que poderemos fazer hoje, num país que, a partir do século de Nassau, conseguiu manter-se unido, com seu idioma, seu jeito de viver, suas características mestiças.
Este é um livro que deve ser lido. Nele está, na voz de 10 narradores, o mais espantoso interregno que tivemos em nossa história. Nele vemos Nassau, com toda a cultura de uma renascença que, na Holanda, produzia um Spinoza e já produzira um Erasmo de Roterdã, e de toda uma tradição de pintores que mudavam o modo de as pessoas sentirem a realidade. Nele deparamos também com o Brasil que se formava. Apresenta-se, neste livro, um novo Nassau, um novo e também renovado Brasil, 450 anos depois da restauração portuguesa no Brasil, quando, em 1654, o sonho holandês chegou ao fim.
"Tempos de Nassau" é uma edição Bom Texto. Nele colaboram, com suas histórias, Alexander Weinberg, Esther Largman, Geny Vilas-Novas, Helio Brasil, Jacobb Gonik, Marco Muniz, Maria Joana Rodrigues, Mariana de Oliveira, Miriam Mambrini e Rodolfo Motta Rezende. Coordenação editorial de Cristina Portela, capa e projeto gráfico de Folio Design, sobre João Maurício de Nassau-Siegen. Gravura de Willen Delff.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 28/12/2004