Um pequeno acidente em casa e precisei chamar, entre outros quebradores de galho, um envernizador que atende pelo nome de Adhemar, isso mesmo, Adhemar com "h", que me parece mais solene e confiável do que um Ademar.
Nada de especial com ele. Trabalha bem. Não fosse pelo cheiro do verniz, que dura alguns dias, sua presença nem seria percebida. Contudo, ficando eu sozinho em casa, esqueci que ele estava na área, dando retoque numa porta que fora afetada pelo acidente doméstico.
Não fui o único que se julgou sozinho. Ele também. Imaginando que não havia ninguém em casa, tomou liberdades e começou a assobiar. Devagar, nem alto nem baixo, naquele tom melodioso do qual Nelson Rodrigues sentia falta, lamentando que ninguém mais assobiava. Nelson dizia que o assobio ficara reduzido a um sinal, um chamamento, uma exclamação, uma vaia, alguma coisa que se faz com a boca para a chamar atenção.
Assobiar mesmo, passou de moda. Não para o Adhemar. Primeiro começou com "Carinhoso", bem lento, bem afinado, embora sem palavras, somente a melodia pura, destacada, boiando no ar sem qualquer artifício.
Não entendo muito do assunto, se há assobios com registro de tenor, barítono ou baixo. Mais: tanto faz um homem ou uma mulher assobiar -o resultado é o mesmo. Funciona como um instrumento musical onde o som vem da raiz de si mesmo, sem qualquer interferência instrumental.
Depois do "Carinhoso" veio um repertório adequado à circunstância de ele estar sozinho e trabalhando, criando sua própria trilha musical. Faz tempo, o finado Sérgio Porto informou que morava ao lado de um prédio em construção. Durante 12 meses, centenas de operários, em diferentes turnos, assobiaram "Carinhoso". E ele sentia o mesmo encantamento que eu senti. Sérgio dizia que nunca ouviu ninguém assobiar bossa nova ou rock. O repertório de um verdadeiro assobiador é simples, essencial, definitivo.
Folha de São Paulo (São Paulo) 22/09/2005