Dois livros novos de Clarice Lispector vêm reafirmar a poderosa presença dessa escritora em nossa literatura. Um deles, "Aprendendo a viver", de 128 páginas, consta de textos extraídos de livros seus, cada um valendo por si, independente do contexto, de que foi extraído. Eis um deles: "Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente". Outro: "Você de repente não estranha de ser você?" E este: "Mas eu não sabia que se pode ser tudo, meu Deus!"
O segundo livro, chamado "outros escritos", apresenta contos e crônicas de quando Clarice era desconhecida. Assim, uma narrativa saída no periódico "Pan" em 1940, e "Eu e Jimmy" publicado na "Folha de Minas" em 1944, juntam-se a uma famosa conferência, "Literatura de vanguarda no Brasil", que pronunciou em várias cidades americanas e brasileiras. Mesmo nessas produções antigas, afirmava Clarice Lispector a condição simbolista de sua ficção. Há mais de cem anos que o simbolismo narrativo, tal como o conhecemos hoje, começou a tomar corpo.
A propósito de Théophile Gautier, dizia Baudelaire que a nova ficção devia ligar-se à poesia, não para tomar-lhe emprestados metro e rima, acrescentava, mas para se aproveitar de sua "concisa energia de linguagem". Ainda nessa linha de pensamento, em livro bem posterior - "The literary symbol", de William York Tyndall, enumerava os motivos pelos quais o romance teria ido além da poesia no século XX.
O romance - que narra, conta, descreve e reproduz, sob muitas formas, o dia-a-dia do homem no seu viver a vida e no seu consumir tempo - veio a se tornar a leitura preferida e normal das sociedades humanas a partir de Cervantes e seu "Dom Quixote". A seguinte frase de T. S. Eliot vinha confirmar a posição de Tindall: "Sou às vezes levado a pensar que o avanço criador de nossa época está na prosa de ficção".
Há, no romance de Clarice Lispector, uma ânsia de ser poema. Romancista dos últimos anos, em várias partes do mundo (Faulkner, Hesse, Borges, Virginia Woolf, Durrell, Amado, Rosa) tiveram a mesma ânsia e, com isto, chegaram a intérpretes de um tempo e de um povo. Nesse plano de ficção renovada, de ficção que teria superado a poesia tanto no favor do público em geral como no denodo de suas realizações, tem Clarice Lispector o seu lugar. Desde "Perto do coração selvagem" que suas ligações com o romance simbolista de seu tempo e com a ficção de Joyce se faziam evidentes.
No seu melhor livro, "A maçã no escuro", a elaboração literária da autora vai mais longe. Desde que, no romance, o homem acorda e inicia sua presença na história, preocupa-se a romancista em descrever, num estilo firme e concentrado, as contrações e ampliações da noite.
O escuro, como invólucro da ação, põe-se em movimento, o silêncio cola-se em outro silêncio, num desdobramento de símbolos que tornam a leitura de cada frase de Clarice num ato de atenção, já que a perda de uma palavra pode anular o efeito previsto pela autora, que reconstitui seus blocos narrativos a partir do homem, só, silencioso, no escuro, como se tudo - o mundo, as coisas e seus significados, a vida e seu futuro - surgissem e se propagassem, e se estendessem, invencíveis.
Tornou-se "A maçã no escuro", com a força de seus símbolos, numa peça fundamental no desenvolvimento da ficção brasileira. Veja-se o ritmo poético usado por Clarice no encerramento de sua narrativa: "E esse modo instável de pegar a maçã no escuro - sem que ela caia"; Realiza ela, nesse livro, uma obra da maior beleza como estrutura simbolista e como arcabouço de palavras .
Os dois livros de agora recapturam textos antigos da escritora, textos em que seu domínio da palavra poética atinge um nível de singeleza de que estes versos (que versos são) revelam: "Minha alma tem o peso da luz, tem o peso da música, tem o peso da palavra, tem o peso de uma lembrança, tem o peso de uma saudade, tem o peso de um olhar."
Em outra página há esta confissão: "É. Eu me acostumo mas não me amanso. Por Deus! Eu me dou melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo meu cavalo livre e solto no prado - tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso pescoço e contar-lhe a minha vida. E quando acaricio a cabeça de meu cão - sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique."
O volume "Aprender a viver", de Clarice Lispector, foi organizado por Teresa Montero, que, juntamente com Lícia Manso, é também responsável pela montagem de "Outros escritos". Edições da Rocco.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 02/08/2005