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O sábio se basta

 

Sempre nos julgamos senhores do mundo, quando somos apenas mais um hóspede dele

O livro era tão pequenininho que nem parecia um livro. Mas quando meu amigo anunciou um presente para mim, me facilitou a identificação do objeto em sua mão: “Trouxe um livro de presente para você.” Enquanto eu lia o que ia na capa bem editada da Auster, ele me explicava: “É um equívoco o que dizem dos cineastas brasileiros, que resistimos ao rodo que os governos querem sempre passar no cinema nacional, em nome dos mesmos ideais esquerdistas com que fazemos os filmes.” Ele apontou para o livrinho que eu abria naquele momento: “O que nós somos está aí: somos estoicos, como Sêneca!”

Em minhas mãos, a bela capa de Zé Luiz Gozzo me dizia o que eram os textos que ela protegia: “Sêneca, cartas selecionadas”, com tradução do latim, seleção e notas de Aldo Dinucci. Meu amigo retomou o livrinho de minha mão, foi a uma página pré-sinalizada e leu com voz de comício no interior: “O estoicismo é um humanismo e a condição prévia para podermos saboreá-lo é sermos humanistas.”

Ele anunciou ter coisa ainda melhor para ler no livrinho. E leu: “Isso é o que há de mais belo e excelso no estoicismo: a visão do humano integrado na natureza, junto com a visão orgânica do cosmos como um grande ser vivo e a compreensão da fraternidade entre todos os humanos, filhos e filhas do cosmos.”

Me surpreendi. A revelação, vista de um jeito mais radical, era a de uma reinvenção do homem contemporâneo. Sempre nos julgamos senhores do mundo, quando, na verdade, somos apenas mais um hóspede dele, como o resto da natureza. Não entendendo nosso lugar no planeta, nos comportamos como se a natureza tivesse apenas que nos servir, estivesse à nossa disposição. Um dia, ela ia começar a protestar, como está protestando com fenômenos climáticos que não sabemos como conter, reações à nossa ferocidade em relação ao meio ambiente.

Percebi que não era bem essa a reação que meu amigo esperava de mim. Ele queria ver meus olhos cuspindo fogo, diante dos absurdos recentes em relação à nossa pobre e ferida atividade.

Como artistas, sempre tivemos dificuldades para explicar aos políticos quem somos e o que queremos. Eles declaram o que seus eleitores querem ouvir; nós, ao contrário, somos mais necessários, temos mais qualidade quando inventamos ideias novas que não estavam na cabeça de ninguém. Por isso, sempre tivemos problemas com os governantes. Mas acabávamos por nos entender, cedendo um pouquinho aqui, forçando a barra um pouquinho ali.

Agora estamos diante de um governo que odeia a cultura porque é ela que, de algum jeito, revela o que eles são e o que pretendem fazer do país. Somos seus principais inimigos, sem possibilidade de conciliação. Somos contra tudo que essa cambada tem feito e ainda quer fazer do Brasil.

Defendi com entusiasmo essas ideias, que eram as mesmas de meu amigo e parceiro, agora com os olhos marejados. Ele me tomou novamente o livrinho da mão, abriu uma página já marcada e leu comovido: “Os estoicos romanos acabaram por formar a ‘oposição estoica’, movimento republicano que se opunha sistematicamente aos tirânicos imperadores romanos”. O próprio Sêneca foi preceptor de Nero e acabou sendo condenado pelo imperador à “morte por livre escolha”. Sêneca cortou os pulsos.

Segundo o livrinho, “o estoicismo nos ajuda a desenvolver a coragem para encarar a realidade, é uma ferramenta para nos ajudar a acessar a realidade”. Meu amigo querido folheou mais umas poucas páginas e leu, com a voz embargada, como se faz ao final de um romance que se aprova: “Se contentus est sapiens. Ou: o sábio se basta. Isso significa, meu caro Lucílio, que o sábio se basta para viver de modo feliz, não para viver.”

O Globo, 03/10/2021