Do ano passado para cá, o setor canoro das árvores, aqui na ilha, sofreu importantes alterações. Aguinaldo, o sabiá titular e decano da mangueira, terminou por falecer, como se vinha temendo. Embora nunca tenha se aposentado, já mostrava sinais de cansaço e era cada vez mais substituído, tanto nos saraus matutinos quanto nos vespertinos, pelo sabiá-tenor Armando Carlos, então grande promessa jovem do bel canto no Recôncavo. Morreu de velho, cercado pela admiração da coletividade, pois pouco se ouviram, em toda a nossa longa história, timbre e afinação tão maviosos, além de um repertório de árias incriticável, bem como diversas canções românticas. A esta altura, certamente já faz companhia a Francisco Alves, Orlando Silva e Nélson Gonçalves, musicando as tardes dos anjos lá no céu.
Armando Carlos também morava na mangueira e, apesar de já adivinhar que o velho Aguinaldo não estaria mais entre nós neste verão, eu não esperava grandes novidades na pauta das apresentações artísticas na mangueira. Sofri, pois, rude surpresa, quando, na sessão-alvorada, pontualmente iniciada às quinze para as cinco da manhã, o canto de Armando Carlos, em pleno vigor de sua pujante mocidade, soou meio distante. Apurei os ouvidos, esfreguei as orelhas como se estivessem empoeiradas. Mas não havia engano. Passei pelo portão apreensivo quanto ao que meus sentidos me mostravam, voltei o olhar para cima, vasculhei as frondes das árvores e não precisei procurar muito. Na ponta de um galho alto, levantando a cabeça para soltar pelos ares um dó arrebatador e estufando o peito belamente ornado de tons de cobre vibrantes, Armando Carlos principiava a função. Dessa vez foram meus olhos incrédulos que tive de esfregar e, quando os abri novamente, a verdade era inescapável.
E a verdade era – e ainda é – que ele tinha inequivocamente se mudado para o oitizeiro de meu vizinho Ary de Maninha, festejado e premiado orador da ilha, que com sua eloquência bota qualquer deputado no chinelo. Estou acostumado à perfidez e à ingratidão humanas, mas sempre se falou bem do caráter das aves em geral e dos sabiás em particular. O sabiá costuma ser fiel a sua árvore, como Aguinaldo foi até o fim. Estaríamos então diante de mais um exemplo do comportamento herético das novas gerações, os sabiás de hoje em dia serão degenerados? Eu teria dado algum motivo para agravo ou melindre? Ou, pior, haveria uma possível esposa de Armando Carlos sido mais uma vítima de Pedro Rodolfo, o mico canalha que também mora na mangueira e, se dão sopa nos ninhos, come os ovos de qualquer passarinho?
Bem, talvez se tratasse de algo passageiro, podia ser que, na minha ausência, para não ficar sem plateia, Armando Carlos tivesse temporariamente transferido sua ribalta para o oitizeiro. Mas nada disso. À medida que o tempo passava, o concerto das dez também soando distante e o mesmo para o recital do meio-dia, a ficha acabou de cair. A mangueira agora está reduzida aos sanhaços, pessoal zoadeiro, inconstante e agitado; aos cardeais, cujo coral tenta, heroica mas inutilmente, preencher a lacuna dos sabiás; e a Itamar, um pica-pau que, com seu topete escarlate, enfeita sem cantar, no máximo dando aquela risadinha de pica-pau de vez em quando. Sim, e ainda há os bem-te-vis, os caga-sebos, as fogo-pagous, as lavandeiras e outros, mas todos estes fazem parte da população flutuante, que não se interessa em obter visto de residência.
E estou assim posto em reflexão, quando me aparece Zecamunista, egresso de uma reunião do Comintern da Pesca de Tainha, cuja sede provisória é no Bar de Espanha. Sabido e inteligente que só o Cão, talvez ele soubesse o motivo para a atitude de Armando Carlos e podia até ser que conhecesse um jeito de trazer o temperamental solista de volta à mangueira aqui de casa.
– Não foi Pedro Rodolfo – me garantiu ele, depois que ventilei minha suspeita em relação ao mico. – Ele continua não valendo nada, mas não rouba mais os ovos de ninguém, depois que foi coberto de porrada por Wilson.
– Que Wilson?
– Wilson, Wilsão, é um bem-te-vi mariscador enorme, que todo dia passa por aqui a caminho da praia. É boa gente, mas não admite muita folga no território dele. Pedro Rodolfo tomou uma bicada dele no quengo que quase teve de ser internado e agora não quer nem saber de meter o mãozão nos ninhos de ninguém aqui, ele pode ser cafajeste, mas não é burro. Não, essa saída de Armando Carlos é política, é uma questão ideológica.
– Não venha me dizer que ele também é comunista.
– Há dois meses, antes de Ary se mudar de volta para cá, eu ia lhe dizer que sim, senhor, ele era comunista e ultimamente vivia no meu araçazeiro. Eu tenho certeza de que ele já estava solfejando a Internacional, ô saudade, aquela parte que diz: “Crime de rico a lei encobre/O Estado esmaga o oprimido/Não há direitos para o pobre/Ao rico tudo é permitido!”
Zeca, eu nunca soube de sabiá cantando hino, você está curtindo com minha cara.
– Eu jamais curto com a cara de ninguém, isso é um passatempo pequeno-burguês decadente. Meu coração proletário se enche de emoção, quando eu canto esse hino, você não entende. Mas, pois é, assim que Ary chegou, esse sabiá safado se mudou para o oitizeiro dele. Ary é alto funcionário da prefeitura de Vera-Cruz e vai conseguir para ele ração e frutas tipo boca-livre total o resto da vida, sem ele nunca mais precisar trabalhar.
– Mas aqui não é Vera-Cruz e o oitizeiro é aqui.
– O patife trocou de domicílio só no bico – informou Zeca, abanando desgostosamente a cabeça. – São os exemplos.
O Globo, 14/2/2010