O antropólogo Manuel Diégues Júnior se dedicou a Alagoas, sua terra natal, onde difundiu a obra de Gilberto Freyre, o mestre a quem também ensinou, como em “O banguê nas Alagoas”, em que conta como era a vida social, econômica e cultural no tempo dos engenhos. Coisa que Gilberto já tinha contado em sua própria obra.
Os livros, quase todos publicados na primeira metade do século XX, substituíram a ausência de obras de época que gerariam os costumes e a história de um período tão importante na formação do Brasil e dos brasileiros. Um período que nos ajudou a sermos o que somos. Para o bem e para o mal.
No fundo, foi essa literatura fora de época que construiu a alma de nosso país, como ela acabou sendo.
O livro “O tupinambá que virou planeta”, de Rafael Pinotti, inaugura um novo tempo nessa sequência de obras. Um tempo em que as aventuras de nossos heróis se estendem ao que acontece nesse século, na política e na ciência de nosso tempo. Portanto, que completa o entendimento dos personagens a partir de suas relações com a matemática e a astronomia, com o mundo em que vivemos, com a invenção do digital, com nosso cotidiano e com o tempo que ainda não sabemos controlar. A misteriosa dialética entre o mundo a nossos pés e aquele que vemos girar acima de nossas cabeças.
“O tupinambá que virou planeta” é uma história que nos é contada em três livros seguidos, narrados independentes um do outro, sem uma só e única razão de ser.
O primeiro livro nos conta a fuga solitária de Ubiratã de sua aldeia tupinambá em direção a um futuro, um objetivo cuja natureza não conhecemos, nem sabemos como supô-la. É narrado por alguém acima e além dos eventos que acompanhamos, numa linguagem semelhante à dos narradores da época, envolvendo mistérios que vão desde simples afrontamentos até a origem das ideias em curso. Ou de simples palavras e objetos que não conhecemos.
Este primeiro livro é narrado por alguém que reproduz o estilo típico dessas narrações, um narrador consciente de nossa ignorância quanto ao que envolve nosso herói rumo ao que ele encontra pelo caminho. E ele encontra guerreiros, como encontra também personagens históricos de grande importância, como os lusitanos que expulsaram os franceses da Guanabara. E até um dos ocupantes gauleses da baía — Monsieur Poisson.
No segundo livro, o leitor acompanha a narração do encontro com Ubiratã em pleno território inca, onde ele vai se instalar em busca do extremo oriente, onde morre o sol. O narrador reencontra Ubiratã para nós, relata sua passagem por ali e acaba escrevendo farto documento sobre sua passagem pelos incas. E o que lhe acontece no período.
Mas agora já se trata de uma memória grandiosa do tupinambá que gera novos sinais celestes, sinais de sua passagem e da passagem do tempo com tudo o que isso significa para ele e para nós. A inexorabilidade do tempo espanta e encanta o narrador que tem com Ubiratã uma relação de admiração que aparece do tamanho que tem nesse segundo livro.
E finalmente, num corte temporal e geográfico, surge alguns séculos depois a lembrança de Ubiratã transformado em um planeta que enriquece a narração algumas pouquíssimas páginas à frente.
“O tupinambá que virou planeta” é uma versão ao mesmo tempo sofisticada e muito simples de uma história que podia servir de exemplar para tudo que precisamos saber e não temos como explicar. A memória do que não vivemos, mas que precisamos explicar.