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O romancista e o restaurante

 

Viajando, vou parar num restaurante sozinho, na hora do almoço. Preferia ter companhia, mas não quis incomodar os amigos, que precisariam sair de seus cuidados, se quisessem ver-me. Além disso, na minha profissão, há um aspecto positivo em almoçar sozinho. Não sei se com outros romancistas, ou ficcionistas em geral, acontece a mesma coisa, mas comigo é incoercível e tampouco sei se tenho esse hábito por ser romancista ou se sou romancista porque tenho esse hábito.

Vem desde os meus tempos de foca, repórter de um jornal de Salvador, nas raríssimas oportunidades em que minha missão envolvia almoçar fora, responsabilidade quase sempre atribuída aos veteranos. Eram ocasiões gloriosas, em que eu imitava os jornalistas americanos que via no cinema, com a escrupulosa exceção da parte em que eles, sem olhar a conta e muito menos esperar o troco, vestiam a capa, enfiavam o chapéu na cabeça e saíam apressadamente, na cola de uma fonte arredia.

Comecei pela elaboração de uma tipologia dos almoçadores solitários. Por preguiça, nunca cheguei a sistematizar minhas anotações e me esqueci da maior parte, mas lembro o suficiente para saber que cataloguei alguns tipos universais. Entre estes, hão que ser mencionados pelo menos o olhar errante, o alisador de coxa, o antecipador da garfada e o que considera comida coisa muito séria. Tenho a certeza de que, respeitadas pequenas diferenças, eles existem em toda parte.

O olhar errante é o mais encontradiço. Sem interlocutor, ele chega, mira em torno, escolhe uma mesa e fica sem saber para onde olhar. Outros, além disso, não resolvem que postura assumir, põem as mãos sobre a mesa, entrelaçam os dedos, ajeitam a roupa e voltam a correr os olhos em redor. Se pedem um drinque antes, o copo recebe uma espécie de atenção distraída, os cubos de gelo são agitados, ou a tulipa de chope é girada sobre sua base e contemplada como se contivesse algum segredo ou mensagem de interesse. Na hora da comida, durante as pausas que a mastigação requer, o olhar novamente não sabe aonde vagar e, depois de algum tempo, parece mirar um horizonte invisível. Ignoro por que, quase sempre sorri para o garçom, ao despedir-se.

O alisador de coxa é mais comum do que se pode imaginar de primeira. Não me refiro a um alisador de coxas alheias, mas a um alisador das próprias coxas. Ou melhor, da coxa, porque geralmente é uma só, que varia conforme o dono seja destro ou canhoto. Uma garfada, boca cheia mastigando, mão embaixo, alisando a coxa, às vezes depressa, às vezes languidamente, às vezes quase massageando. Afeta equanimemente homens e mulheres, sendo que algumas destas chegam a levantar discretamente uma pontinha da saia, para dar a alisada diretamente na pele, deve ser um barato.

Enquanto os que se alisam talvez possam ser vistos como ainda carentes do afago maternal, no tempo do peito e da mamadeira, os que contemplam a próxima garfada, geralmente com um olhar fixo e quase sem pestanejar serão quiçá ansiosos e desconfiados. Põem na boca uma garfada e, enquanto mastigam, preparam rapidamente outra, que fica esperando a meio caminho entre o prato e a boca, sem que eles desviem os olhos um instante. Finalmente, o que considera comida o assunto mais sério que existe geralmente é gordinho e muitas vezes sorridente e expansivo, mas, assim que a comida chega à mesa, seu semblante se fecha e ele fica quase sem ar, enquanto seu olhar rápido e sôfrego analisa tudo. Depois dos primeiros bocados, ele relaxa e volta à bonomia habitual.

Daí para a prática de biografar os companheiros de restaurante foi um pulo. No tempo em que, já mais velho e por minha conta, eu gostava de almoçar no excelente restaurante do extinto Hotel Chile, em Salvador, com vista para a baía, já me achava uma espécie de profissional do ramo. E certa feita, depois de dois almoços de observação, sem perguntar nada aos garçons, fiz toda a biografia de um casal do interior. Ele, estava na cara, prefeito de uma cidade próspera, a julgar pelas roupas. Ela, rechonchudinha, bonitinha, produzidinha, sorridente, perfeita primeira-dama para aquele prefeito. Não me recordo dos detalhes agora, mas só faltei adivinhar os nomes dos dois. Aliás, o dele eu adivinhei, porque achei que era o mesmo que acabara de ser denunciado por desvio de verbas e no qual os jornais do dia estavam falando – e era.

Pronto. Como bom repórter, comecei a entrevistá-lo na hora. E também fiz umas perguntas à primeira-dama, cujas respostas me pareceram meio esquisitas, assim como a cara dele enquanto ela falava. Mas achei que era timidez de gente do interior diante da famosa grande imprensa. A matéria não ia sair grande coisa, porque as respostas dele, se bem peneiradas, se resumiam a que era vítima de perseguição política. O furo de reportagem, então muito perseguido, não estava ali, a não ser pelo fato de que eu era o primeiro a ouvi-lo. Mas aí chegou o fotógrafo que eu havia pedido. A primeira-dama empalideceu e levantou-se atarantada, ele também, declara-se grande confusão no recinto. Acalmada esta, vem à tona a verdade que todos achavam que eu já percebera, até parecia que eu não era daqui. Claro que não se tratava da primeira-dama e, sim, da chefa de gabinete de Sua Excelência, o qual logo me chamou a um canto e indagou cochichando quanto eu queria para esquecer aquilo tudo, inclusive a entrevista dele, se fosse o caso. Não, eu não queria nada. E nem fiz matéria nenhuma, nem o fotógrafo tirou fotos. O prefeito me agradeceu e me chamou de grande jornalista, mas foi então que eu vi que eu sou mesmo é romancista, e olhe lá.

O Globo, 8/5/2011