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O risco Brasil e a parábola Argentina

 

Todo o fantasma de especulação descido sobre o perigo de um ganho das oposições, a partir dos pregoeiros internacionais, conturba as opções de fundo, pedidas pela eleição, forçando-nos a um clima de salvação pública, e à troca de continuidade do que aí está pelo seu estrito e crasso continuísmo. É contra tal regressão que se insurge o próprio discurso, finalmente instituído, da candidatura Serra, no sufrágio explícito, e no contorno que lhe deu a palavra de FHC. Perdemos a nossa visão nacional no peso e nos jogos efetivos da globalização.


A violência deste condicionamento externo, tão manipulado quanto implacável, leva o situacionismo a se constituir como fiador do que pede, hoje, a imagem do Brasil tolerável e conveniente, de que se tornará refém o governo eleito sob tal explícito compromisso. Só que não se estaria, então, diante do que imponha o desenho largo das forças efetivas do mercado global, mas da artimanha no conduzi-los, que é peça constitutiva também do sistema, e termina por definir as regras aparentes e definitivas de seu jogo.


O quadrimestre que antecipa outubro de 2002 trouxe esse novo espectro de decisão talhado sobre a clássica e conhecida volubilidade da conjuntura, que, em nosso caso, tanto é mínimo o nosso peso estratégico global, tanto mais cumpram-se as maquinações da pirataria de controle do nosso futuro, na impunidade dos especuladores e do disparate do dispositivo de lucro destes bolsões de impunidade financeira. As expectativas - em países do bas fond da globalização - é que ditam o risco Brasil e o comando no futuro que venhamos a ter após outubro.


Saturação. A terrível dependência em que nos encontramos, de cálculos de grupos financeiros mais que econômicos, sobre o que fique de nosso nicho de prosperidade possível, exprime nossas visões sobre a permanência do sistema, a sua renovação ou o atendimento do imperativo de que é tempo de alternância, pela clara saturação do situacionismo que está aí.


A se querer enunciar um começo de alternativa, para além da mera ventilação do status quo, nunca atentamos, por completo, ao crescimento da desproporção no quadro gigantesco do mercado, em que contamos tão pouco, e de que dependemos para sobreviver. Por isto mesmo é cada vez mais óbvio o por onde começar. Tudo nos leva à atitude quanto à conservação e aos encargos da nossa dívida externa, e a mudança, ou não, do prêmio que queiramos assegurar ao conjunto de nossos credores

internacionais.


E o que vale, no caso, é a margem de outorga que se nos queira conceder, num quadro onde, à primeira vista, é o conhecimento do que aí está, e as suas seguranças que abrem os caminhos. A nossa hiper dependência externa condena-nos à inércia de um status quo, e o acesso de uma nova equipe de poder abre, em princípio, horizontes de derrapagem do risco Brasil. Implica o seu ricochete sobre a retração de capitais, de par com as sobre-pressões, para a garantia das liquidezes de seus serviços de juros, e o adiamento sine die do que possa ser uma nova articulação entre dívida externa e interna para, nesse modelo, pensar-se no deslanche - esperando Godot - enfim, do desenvolvimento e sua promessa de auto sustentação.


Neoliberalismo. Nesta perspectiva, o fantasma argentino não pesa como o epitáfio da fórmula, levada à exasperação ortodoxa do que seja o jogo tolerado do neoliberalismo periférico, diante do mercado global. O quadro que divisa o Brasil às vésperas da eleição não é apenas o do vaticínio da permanência desta ortodoxia, impermeável ao vulto de uma débâcle nacional que levou, num quadrimestre, à pobreza irrecuperável, 52% da população vizinha. Mas, embalde, mostraram estes meses qualquer alternativa à recuperação, que a da volta, estrita e absoluta, ao talhe anterior à marcha à Casa Rosada.


Rejeitando o retrato falado que lhe trace a especulação, a candidatura Serra não se ilude sobre a profundidade em que possa invalidar o seu eventual governo, de saída, pelo abate dos índices ainda de viabilidade definidos para o nosso risco global. Não tem dúvidas sobre esta prioridade essencial que este debate imprimirá à campanha, sem poder, afinal, alterar os presságios que imporão as promessas verdadeiras - e que contam - de estabilidade, no seu jargão e no seu recado. Em vão escapam à essa expectativa básica e à inércia em que, inevitavelmente, se transforma em fiador desta estabilização. Poderia até dramatizá-la, num efeito retórico de cuja impropriedade eleitoral já se deu conta, na disjuntiva, "ou eu, ou o caos".


A outra vertente, entretanto, do que sejam ainda os trunfos extraídos da democracia política e o peso maciço de uma eleição como a de outubro próximo, explora o poder de barganha de uma presidência nascida da alternância e, por ela, da alavanca de desempenho que só a oposição hoje pode propiciar. É a de Lula, ou seja, a de um estado de mobilização política, gerado por um voto carregado de um mais de consciência, como o do desejo de mudança a bem, pelo menos, do arejamento do sistema, ou da consciência de uma busca de alternativa ao que, a ficar-se como estamos, deixa-nos diante do cadáver argentino e, ao mesmo tempo, com a consciência do impasse de estratégias para mudá-lo.


De toda forma, nesta altura, as paradas de crescimento nos Ibopes, de um e outro presidenciável, só nos mostra não apenas o peso conhecido da nossa vulnerabilidade internacional, mas o quanto nela chega a intervenção do jogo especulativo. Daqui para eleição, vai-se deixá-lo correr à solta? Ou um a frente comum sobre a transição - qualquer que seja - e o trato nela dos capitais externos, é a única saída para que o nosso futuro não seja o de uma triste profecia que se auto-cumpra.


 


Jornal do Commercio (RJ) 28/6/2002