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O rinha zero vai dar certo

 

Ultimamente, como devem ter notado os pacientíssimos leitores que visitam este espaço, dei para me preocupar com os entrelinhistas, o pessoal que lê nas entrelinhas. Espero tratar-se de um surto passageiro, que vá embora depois do segundo turno eleitoral. O entrelinhismo, afinal, é uma postura filosófica ou metodológica arraigada em muita gente e, se quiser continuar a escrever e publicar, vou ter que conviver com ele o resto da vida. Mas hoje, particularmente, faço questão de deixar claro aos entrelinhistas que, além de não ter recebido oferta de suborno nenhuma, não posso ser acusado de defensor das brigas de galo e Itaparica está aí, para não me deixar mentir.


Eu não devia falar, porque as brigas de galo, assim como o jogo do bicho, são práticas secretíssimas e raríssimas (diz aqui que a rinha na qual foi preso Duda Mendonça funcionava havia apenas 17 anos, não dava ainda para ninguém suspeitar de nada), mas, em Itaparica, há brigas de galo. Na última vez em que me manifestei contra elas, no Mercado, fui vaiado. Meus conterrâneos sabem que eu não suporto briga de galo e jamais botei os pés na rinha da... Ia dizer o nome do lugar onde fica a rinha mais popular, mas não sou dedo-duro, ninguém sabe onde é e não serei eu quem fará a revelação.


E mais, desfiro um golpe final. O próprio Duda Mendonça, que há dé-cadas não vejo em pessoa, foi, muito brevemente, meu aluno e, depois disso, chegamos a trabalhar juntos, ainda mais brevemente. Nessa época, ele teve a oportunidade direta de expressar sua impaciência em relação aos comentários que uma vez lhe fiz, sobre brigas de galo. Ou seja, igual a muita gente pelo mundo afora, ele gosta de brigas de galo e a discussão, digamos, filosófica, sobre o assunto redundaria inútil - nem eu iria convencê-lo, nem ele a mim, de maneira que não discutimos e continuamos no trato amistoso que sempre tivemos, até que a vida nos fez sumir um do outro, a não ser à distância.


Os aspectos jurídicos das brigas de galo são outra coisa que também não vou discutir. As brigas são proibidas e acabou-se, dura lex, sed lex. O que quero ver é se dá para abstrair esses aspectos da questão, para examinar somente o que aconteceu no tal episódio. Segundo li, foram destacadas dezenas de policiais, todos de colete à prova de balas, a fim de desbaratar a temível organização criminosa. Provavelmente, em termos técnicos, a operação estava correta, mas é assim que se costuma proceder, no Brasil? É assim que vemos tratados os criminosos de todos os tipos, inclusive os chamados de colarinho branco, que assolam a nossa vida?


Não, claro que não é assim, estamos fartos de saber que não é assim. Numa rinha que funciona há 17 anos, em local mais do que conhecido, está presente o marqueteiro do governo, arma-se essa presepada toda e se prende o dito marqueteiro, em mise-em-scène digna da captura de pelo menos o ajudante-de-ordens de Bin Laden. Que novidade é essa, agora as rinhas de galo são prioridade do governo, o Rinha Zero substituirá o Fome Zero, já que este não deu certo, nem vai dar? Trata-se de uma ação inserida no contexto maior da proteção aos animais, que agora o Brasil converte em programa fundamental do governo? É bem verdade que vivemos num país onde é “mais negócio” matar o fiscal do Ibama que nos pegar matando o jacaré do que ir preso pelo assassinato do jacaré. Matar bicho é crime inafiançável, cana dura. E matar gente é moleza, tanto assim que o método mais fácil de se livrar de um desafeto no Brasil e encher e cara e atropelá-lo. Se alguns poucos requisitos forem satisfeitos, o sujeito é solto imediatamente e ainda processa a família do defunto por danos morais. Horrível pensar isso, mas alguém falou no boteco e é verdade: se o Bateau mouche estivesse cheio de tatus, provavelmente os responsáveis pelo desastre teriam sido presos e punidos exemplarmente, mas, como era só gente, deu no que deu.


Sério mesmo, queridos leitores, entrelinhistas ou não, o que estou discutindo não é o problema de atividades como as dos realizadores de brigas de galos, rodeios, vaquejadas, lutas de cães, canários ou peixes. Não se trata do que o homem faz com ou contra os animais. Isso rende anos de discussão apaixonada e até brigas sérias e não pretendo me meter nelas, pelo menos agora. O que quis foi chamar a atenção para a singularidade dessa estranha operação. Como disse antes, pode estar certíssima, admito até que provavelmente me alinharia com os que acham que devia ser sempre assim, mas não é normal entre nós, isso a gente sabe, teve toda a cara de uma ação especial, casuística.


Ou seja, claro que há alguma coisa que não sabemos, nessa história toda. Boatos e versões hão de estar correndo soltos em rodas de conversa pelo Brasil afora. A maior parte fazendo a velha pergunta, que, para me exibir mesmo, lembro em latim dos tempos da Faculdade: Cui prodest? A quem aproveita, quem sai ganhando? Não sei, gostaria de saber. Devo ser muito burro, aliás, porque não faço a menor idéia. De repente essa armação toda, um escarcéu federal? É, deve ser um programa novo do governo, deve ser o Rinha Zero mesmo, nunca se sabe, o mundo é cheio de novidades.


Fiquei remoendo este assunto, que reconheço já estar velho, e acabei por perder espaço para tratar do segundo turno, especialmente na poderosa cidade de São Paulo, onde, por sinal, Duda assessorou d. Marta. Não tive nem tempo de comentar a propaganda do PT, ora pactuado com o dr. Maluf “pelo bem de São Paulo”. Pois é, nunca se diga “dessa água não beberei” ou “já vi tudo o que tinha que ver”. E, aconteça o que acontecer, ao menos que seja mesmo pelo bem de São Paulo. Pelo bem de todos os brasileiros, aliás, Deus é grande e uma hora dessas há de nos acudir.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 31/10/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 31/10/2004