O impacto da aposentadoria prematura de Joaquim Barbosa vai ao crivo de uma interrogação em nosso inconsciente coletivo quanto à força simbólica do presidente do Supremo. No pleno advento de nossa democracia racial, Barbosa passa, ao mesmo tempo, à condição de herói e de desafiante. Repercute o gesto, num misto de elogio e de crítica, na medida em que se multiplicaram tanto o apoio quase mítico à sua figura, quanto o repúdio ao autoritarismo e à violência das diatribes do magistrado.
Mais se aguça o contraste pelo relevo da sua biografia, com ampla formação no exterior, ensino em várias universidades estrangeiras, multicomando das línguas e carreira canônica no Ministério Público. Da mesma maneira, o ministro Barbosa acantonou-se numa posição solitária na Corte, na violência das interpelações aos colegas, na suspeita de corrupção de seus interlocutores e numa refrega constante, todo o contrário dessa busca, quase pedagógica, do consenso, esperada, naturalmente, do presidente da Corte Suprema. O que está em questão, no autoritarismo do ministro, vai a um protagonismo do fundo das nossas expectativas sociais e põe em causa o recado do seu desassombro.
Tratar-se-ia de afirmação compensatória ao atraso do reconhecimento da efetiva igualdade racial, na presente realidade brasileira. Barbosa não foi o primeiro negro trazido ao Supremo, e sim Pedro Lessa, em 1913, que buscava o disfarce continuado de sua aparência.
Ao fio de toda a carreira de Barbosa, o rigor das sentenças é como uma “segunda natureza" da expressão desse desempenho restaurador, em que qualquer condescendência nasceria de uma frouxidão presumida, na exemplaridade do dizer o Direito. À conta de presumir-se continuamente observado, o ministro manteve o isolamento das suas sentenças, fora da busca de possíveis consensos do colegiado. Permearia sempre na sua voz a reiteração da palavra ilibada.
A tradição prévia da Procuradoria e da tarefa acusatória ganhava uma irrevogabilidade do dictum e uma visão quase absoluta do fazer-se justiça, numa sociedade vista, ainda, como injusta e seletiva na sua mobilidade social. O olimpismo do comportamento de Barbosa talvez tenha, de vez, tornado prescindível, senão saturado, a política dessa guarda de vagas cativas para garantir a mobilidade social, ínsita à nossa democracia.
E, graças ao seu desempenho, daqui por diante, não causará mais espécie a nomeação de um novo ministro de cor. O que está em causa é a superação da premissa de que se mantinha um segregacionismo em nossa cultura, no mito a que acudiria o regime de cotas no acesso do negro às nossas funções e serviços públicos. Entramos em tempos de normalização da nossa convivência coletiva e vamos dever ao ministro Barbosa um passo decisivo no ganho de nosso estado de direito.