A vitória de Rafael Correa nas eleições para a Assembléia Constituinte do Equador vai ao fundo desta nova virada de página da América andina começada pela Venezuela, no confronto entre o centro e a periferia num mundo hegemônico. O regime democrático transformou-se na plataforma para a largada dessa legitimidade política nesta ruptura com o status quo, e a densidade do voto opção que hoje associa Caracas, La Paz e Quito.
A eleição presidencial epitomizara o conflito, que o seu oposicionista, Alfredo Noboa, é a mais rica fortuna do país, e toda assentada no cultivo bananeiro. Seria impossível imaginar-se contraste mais claro, quando o voto pelo situacionismo representava o reforço do neoliberalismo em toda a sua transparência. O Equador expôs-se ao inédito quadro da dolarização da sua economia, mostrando o quanto a economia das exportações primárias, em todo seu perfil semicolonial, tornava explícita a prosperidade concentrada do país.
Arrancando de uma visão de esquerda, ligada mais ao sentimento instintivo de recusa desse status quo que de uma força definitivamente organizada, Correa logrou polarizar essa consciência profunda do Equador pela mudança. Ainda que, então em maioria relativa, sua vitória não deixava dúvidas sobre a quebra, de vez, do conformismo político e econômico do país. Ganhou numa aliança de forças laxas, e não corporificou, à época, num partido, o seu êxito. Pensou a prazo longo, para tripular o Legislativo, com vozes e votos, ao porte do ganho presidencial. Foi o que garantiu agora, levando a uma Assembléia Constituinte que deu a Correa, domingo último, 73% da maioria nacional. Juntos, Noboa com 6.5%, e Gutierrez com 7.6%, mostram o contraste, e a marca contundentemente plebiscitária que teve a ida às urnas. Vivemos, nesta instância, este paradoxo de que a legitimidade eleitoral implica no ímpeto à mudança mesma do modelo para garantir a permanência destes votos maciços, e dar-lhes um valor aplastante para as reformas políticas e econômicas do país.
Correa não deixa dúvida sobre o intento, a favorecer, na Assembléia Constituinte, a transferência para o Executivo do poder de legislar, quanto, sobretudo, de reduzir o poder clássico das oposições no regime democrático. Pretende modificar os quoruns para a reforma da Carta Magna, ferindo o principio das maiorias absolutas para alterá-la. Neste mesmo empenho confronta também as regras básicas da democracia, qual sejam a da conservação do pluralismo político e da garantia da liberdade de imprensa. Anuncia o cerceio da informação, denunciando a “tirania mediática” e a propondo-se ao controle da informação nacional. Novamente se manifesta a vertente de Chávez, antecipada pela não renovação da concessão da maior TV oposicionista na Venezuela.
O que, de logo, mais importa é verificar-se até onde o governo emergente confronta o velho sistema político assimilado ao estrito status quo, e de que forma num quadro, objetivamente, de plebiscito pode atingir a mecânica representativa do país a médio e longo prazo. Correa apressa-se em dizer que não mexerá na dolarização atentando, realisticamente, ao que apenas começa e não se ilude sobre o quadro de pressões externas à frágil economia equatoriana.
Mas em que termos concilia-se com o Estado de Direito a alteração de cláusulas pétreas do regime democrático, como a interdependência dos poderes e a conservação do pluralismo na vontade geral da nação? Com vantagem sobre seus colegas andinos e bolivarianos, Correa ganhou um consenso maciço, para dizer ao que veio, contra um quadro quase caricatural de consagração da dependência internacional. Importa, sim, e para o futuro imediato da região, que uma consciência de mudança forte das suas diferenças não se esvaia em populismos melancólicos, nas unanimidades de um só verão.
Jornal do Commercio (RJ) 5/10/2007