Lembro uma história que contei há tempos. Na França, Dominique Trizt, de quatro anos de idade, divertiu-se a tarde inteira jogando, da janela, as joias de sua mãe e o dinheiro de seu pai. Do lado de fora, "um rapaz grande e engraçado" ia recolhendo as joias e o dinheiro. Até hoje a polícia procura esse rapaz grande e engraçado que incentivou a inocente brincadeira de Dominique Trizt.
Todos nós conhecemos, de sobra, esses rapazes grandes e engraçados que se aproveitam de nossa ingenuidade e de nossos rompantes emocionais. Que exploram nossas crises domésticas. Têm nomes norte-americanos, franceses, ingleses, canadenses, italianos, alemães e japoneses.
Na Antiguidade, o poder emanava de Deus: "omnia potestas a Deo", segundo ensinou São Paulo.
Esses inefáveis tempos, se não mudaram em substância, mudaram em forma: hoje a própria Igreja Católica reconhece que o povo é uma espécie de voz de Deus e aceita a vontade popular como um dos sinais mais autênticos e constantes da providência divina.
Os mediadores pessoais entre Deus e as comunidades foram abolidos, já que ninguém sobe à montanha para trazer as tábuas das leis: elas têm que ser feitas mesmo no debate nem sempre honesto e razoavelmente público, tal como são feitas nos Congressos de todos os povos livres e civilizados do mundo. Os pajés perderam o emprego.
Mesmo assim, não faltam candidatos para a função. Não sobem à montanha, como Moisés, Maomé e Zaratustra.
A montanha se reduz ao tempo que cada um terá na televisão. Todos os acordos, programas, palanques, fusões e confusões não dão bola para o "omnia potestas a Deo".
Contrariando São Paulo, o poder nasce de quem fica mais tempo enchendo o saco dos eleitores, ocupando o espaço do Big Brother.
Folha de S. Paulo(RJ), 18/2/2014