Por um voto, o racha entre as duas Argentinas foi a favor da manutenção do status quo do velho regime. Voto esse, inclusive, não de oposicionistas entranhados, mas do próprio vice-presidente, numa decisão agônica, que vai ao fundo do eixo da coalizão no governo Kirchner. De há muito o justicialismo errava por entre equívocos como o do governo Menem, mas mantinha o impulso final histórico, da busca do outro país, frente a um dos establishments mais ferrenhos e implacáveis de toda a América Latina.
As contradições entre governos militares e imperativos reais da mudança levaram repetidamente, desde a era Alfonsín, a colocar a democracia no ângulo dos inócuos reformismos políticos, senão da clássica e estéril ideologia moralista. Estagnaram-se as distribuições de renda da época de ouro do Peronismo, e os seus sucessores vieram abraçar as políticas mais clássicas do conservadorismo econômico. As privatizações de Menem marcaram a desfiguração clara do que poderia ter sido um desenvolvimento, arrancado à mera prosperidade inercial clássica do país, sempre, dos seus mais ricos. E dominado pelo setor de exportação, ancorado na atividade primária, do "país granero" da exportação maciça, do trigo e da sua horticultura.
Significativamente, também, a terceira encarnação do Peronismo, a do casal sucessivamente governante, vinha de províncias longínquas em que uma visão de esquerda dava-se conta, de imediato, do contraste nacional e da torna às primeiras prioridades para sua efetiva mudança de estrutura. Ficava-se aí ainda na soleira da tributação dos estancieiros e do latifúndio, como supõe ainda um regime semicolonial.
Antes de pensar-se nos luxos de futuro, em que se interroga da plena sustentabilidade do desenvolvimento, a Argentina kirchneriana voltava às ferramentas básicas de garantia de um poder econômico do Estado, e seu relance nas atividades de infra-estrutura. Vivia, ao mesmo tempo, o último lustro as ilusões do privatismo de Menem, e a troca do investimento industrial externo prometido, pela clássica atividade especulativa, a empinar de maneira tão farfalhante a Bolsa de Buenos Aires.
Cristina Kirchner depararia a ausência gritante da contribuição efetiva para o erário do país dos estancieiros. Associou a credibilidade de seu governo à legislação contundente de novas cargas tributárias, confrontadas com greves e interrupções das estradas nacionais.
Impossível a negociação que amortecesse o confronto, a Presidente partiu para as contabilidades cruas de voto do Congresso, confiada no porte final de apoios, que levaram ao segundo e mais decidido governo Kirchner. Frente, entretanto, frouxa e sem a mesma coesão em que se entrincheirava a bancada ruralista no jogo das radicalizações. O voto do vice-presidente Cobo se transformou num "não" das parcas, podendo bloquear o ponto de partida imaginada da plataforma de Cristina.
Não se sabe nunca a quantos degraus vai um retrocesso histórico. Nem, de outro lado, o quanto ganha a visão de mudança, forçada a uma tardia tomada de consciência. A traição de Julio Cobos afiou o gume da mobilização, e Cristina logrou nos dias seguintes ampliar, sem mais cuidados situacionistas, o salário mínimo dos descamisados. A Presidenta desprendeu-se da caminhada reticente e do mau humor contagiante do marido. Exprime hoje a Argentina, empatada no seu racha, a força do país de quem não fica mais em casa para o corpo-a-corpo que mal começa.
Jornal do Commercio (RJ) 15/08/2008