A doença e internação de Maria Emília mudaram os hábitos de Edmundo e de Sylvan
NÃO ERA a pessoa indicada para o desabafo. Mas Sylvan tornara-se, de uns tempos para cá, o seu amigo mais íntimo, o mais parecido consigo mesmo, famoso no Posto Seis pelas cortadas letais no vôlei, famoso por sua sorte com as moças.
Tinha a vantagem sobre Edmundo de ser solteirão, desquitado havia muito da filha de um general. Além do mais, embora sem instrução apreciável, era dotado de bom senso feroz, ia direto aos assuntos, mudava de consultório todos os anos, não por leviandade ou incapacidade de se manter num endereço fixo, mas para fugir da monotonia, do fazer sempre a mesma coisa.
Além de dentista opaco, vendia carros, imóveis, loteamentos, houve tempo em que negociava quadros, embora pouquíssimo entendesse de pintura. Conseguia a façanha de ganhar um pouco de dinheiro em tudo isso, mas tinha mãe que possuía lojas na Barata Ribeiro, e embora mal alugadas, davam para as despesas maiores da família, que se resumiam na velha que gastava pouco e no filho que gastava muito.
Houve até um pouco de solenidade naquele encontro. Os dois se encontravam sempre, e em qualquer lugar, sem necessidade de marcar nada, encontravam-se por força de gravidade em que os dois funcionavam como eixos um do outro, moravam perto, tinham em comum o interesse do vôlei e das garotas, o gosto pelo não-compromisso.
Edmundo passava parte da manhã examinando a cotação das bolsas, Tóquio, Londres, Nova York.
Na simetria operacional com o amigo, Sylvan cumpria um pequeno horário no consultório dos sócios, dava ou recebia telefonemas, a partir do meio-dia estava pronto para o primeiro chope num dos bares da Atlântica onde sabia que Edmundo, com a precisão de um cometa que obedece a uma rota imutável, passaria por ali. Fariam o programa da tarde, que nem era um programa específico, mas o programa do deixar acontecer. E o que acontecesse seria lucro.
A doença e internação de Maria Emília mudaram os hábitos de Edmundo, e, por extensão, os de Sylvan. Por respeito ao amigo, ele evitava comentários, informava-se sobre o tratamento, as melhoras e pioras de seu estado, mas sem nada insinuar -ele gostava e respeitava o amigo- mas percebia que Edmundo começava a ficar exausto de tudo aquilo, as visitas ao hospital, as idas e vindas do câncer terminal da mulher, o problema dos filhos, entregues agora à mãe dele, uma senhora de 74 anos, que não controlava os garotos, um deles, o mais velho começara a cheirar coca num grupinho que se reunia na General Osório às tardes, calibrando as noites. O outro poderia seguir o mesmo caminho.
Na varanda do velho Luca's, um restaurante de comida alemã que tivera sua época na Copacabana dos anos 40, Sylvan ficou admirado de já encontrar Edmundo. Geralmente, era ele que chegava antes, sabendo que o amigo, com a pontualidade dos cometas, surgiria logo depois. Uma das regras de Edmundo era a de não esperar ninguém. Em compensação, ninguém esperava por ele, chegava sempre quando devia chegar.
-Estou com um problema -Sylvan nem se sentara ao lado do amigo que tomava o primeiro chope daquele início de tarde.
- Um só? Um problema só? Francamente, sempre o admirei por não ter problemas e agora, que eles surgiram com a doença de Maria Emília, os garotos, as despesas, os altos e baixos do tratamento, evidente que você não teria um problema mas vários problemas...
Edmundo olhava a bebida meio surpreendido, não pedira nada para beber, o garçom o servira por gravidade, ele bebia sem vontade, apenas para ganhar tempo não sabia para quê.
Poderia falar francamente com o amigo, era o único que seria capaz de entendê-lo, mas tinha um certo pudor em se abrir sobre o que estava pensando nos últimos dias, a vida desarrumada, para um cometa que tinha uma trajetória segura, imutável, era o caos, e pior do que o caos, a incerteza de tudo. O problema agora era sério, envolvia uma escolha delicada, certamente dramática. Não podia pensar em voz alta, ou pensar consigo mesmo.
Entrou no assunto de sola:
- O que você pensa sobre a eutanásia?
Folha de S. Paulo (SP) 30/11/2007