“Regresso de Itaparica com o ânimo elevado, não só pelo que lá vi como pelo que vejo cá”
“Quanto à ilha, continua em posição de vanguarda no pensamento político e filosófico”
Regresso da minha movimentada estada anual em Itaparica com o ânimo elevado, não só pelo que lá vi como pelo que vejo cá. O que vi lá procurarei relatar adiante, mas o que tenho visto cá é quase plácida pasmaceira. Tem esse negócio aí de cartão corporativo, ou que outros nomes cabalísticos lhe dêem, mas sabemos por experiência que é tudo brincadeirinha, como sempre, e já estão combinando o resultados das investigações, o governo felicíssimo e todo mundo mais também felicíssimo, até porque talvez certas molezas sejam retiradas (e transferidas para outras práticas, nunca extintas), mas o cartão permanecerá, sob os mais fartos elogios, não só do presidente como de sua leal oposição. O desfecho é invariavelmente um sábio ''''não muda nada aí'''', até porque o povo não liga e é chegado a um cabresto curto desde as origens. Mudar isso seria um grande abalo em nossa busca de uma identidade nacional.
E o clima que tenho percebido, não posso negar, é de geral contentamento e felicidade. Desfiam-se números róseos para a economia, com aumento de empregos formalizados, consumo acelerado, inflação sob controle e apenas um problemazinho lá e cá, para dar graça. Todo mundo tem problema e o governo não é exceção. O que interessa é que o País se transformará num gigantesco canteiro de obras, a coisa está boa por tudo quanto é canto - a começar pelas culminâncias da popularidade do presidente - e falastrões maledicentes e agoureiros, do meu tipo, devem agora pelo menos ter a decência de reconhecer que erraram em tudo.
Faço isso com prazer, adoro ser politicamente correto. Ao que parece, errei em tudo e este ano será para todos um rosário de triunfos. Claro, não retiro nada do que escrevi. Uma coisa é reconhecer que se errou, outra coisa é desdizer-se. Talvez sejam manias d''''artista, maluquices de escritor, má vontade ou o que for lá, mas continuo, digamos, pensando errado. Até torço, pois, afinal, se trata de meu país e de meus compatriotas, para continuar errado ou mesmo erradíssimo e, vindo a deflagrar-se a revolução cultural já por muitos ansiada, envergarei com o garbo possível as orelhas de burro que me destinarem e darei o melhor de mim no desempenho das tarefas de limpador de estábulos da fazenda onde me submeterão a indispensável processo reeducativo.
Quanto à ilha, continua em posição de vanguarda no pensamento político e filosófico, que condiz perfeitamente com o clima ora vigente no País. Já não contamos com a Escola Filosófica do Sorriso de Desdém, aqui amiúde mencionada e jamais esquecida, nem temos mais um filósofo do porte do finado Luiz Cuiúba, mas, por exemplo, está em pleno funcionamento, sob a liderança de um peixeiro amigo meu que sempre roubou no peso (um para comprar, outro para vender; aquele mais leve, este mais pesado) e que por enquanto prefere manter seu nome em segredo, o Círculo de Estudos Santa Luzia. Designação duplamente adequada, pois o Mercado Municipal tem o nome dessa santa e ela é a padroeira dos que padecem da visão. Na opinião majoritária dos membros do grupo, o mal do Brasil é justamente não vermos o óbvio.
O agitador Zeca Harfush, conhecido na ilha como Zecamunista, devido a seu passado bolchevique, o mais respeitado quadro intelectual do Grupo, me concedeu uma breve entrevista, na qual, entre cusparadas de fumo de rolo mascado e breves surtos de exacerbação, me explicou sua posição, que, esperam ele e seus companheiros de pensamento e ação, virá a ser em breve a postura assumida de todos os brasileiros.
- Nós somos realistas - explicou-me o lendário subversivo. - E chegamos a nossas conclusões através de métodos rigorosamente lógicos e científicos. Partimos de um axioma básico que, certamente por motivos voluntaristas, moralistas, hipócritas, reacionários e colonizados, todos destituídos de qualquer fundamento na realidade, persistimos em negar, quando sua aceitação plena é a base para nossa afirmação como grande potência.
- Interessante, muito interessante. Que axioma é esse?
- Somos todos ladrões! - exaltou-se ele repentinamente. - Ladrões e trambiqueiros! Quando finalmente aceitaremos essa verdade cristalina, para assumir nosso papel de destaque no concerto das nações? É da nossa natureza meter a mão em qualquer grana que esteja dando sopa e procurar imediatamente se fazer, assim que chega a um cargo público. Qualquer um de nós é assim! O erro é, em vez de canalizar isso para nosso próprio benefício, querer combatê-lo, à custa de tanta mentira e sofrimento inúteis. O Grupo de Estudos Abra o Olho, que é o nome popular oficial de nosso movimento, tem como proposta básica a aceitação integral de nossa condição de povo de ladrões. Violentar a nossa natureza é que nos faz um mal terrível.
- Compreendo. É curioso que já ouvi essa opinião em outros lugares. Isso se aplica a esse problema dos cartões, não?
- É óbvio! Quanto tempo está sendo perdido com essa conversa mole dos cartões? Você sabe o que mais chateia o brasileiro nessa história? É que não deram um cartão a ele! Se tivessem dado, ele era todo a favor, a realidade é essa! Nosso lema é em latim, para impressionar o povão: ''''Hodie mihi, cras tibi'''', primeiro o meu! Que graça tem o sujeito se sacrificar para chegar ao poder e não se fazer? É para isso que o Estado existe, vamos deixar de ser burros! Colonizados! Moralistas de merda! Chega de querer prender ladrão, o certo é prender otário! Ladrões do Brasil, desuni-vos, a não ser para formação de quadrilhas! Nós somos bons mesmo é de maracutaia!
- E vocês pretendem levar esses ideais adiante, nas próximas eleições?
- Com certeza. A depender de quem compre os nossos votos, é claro.
O Estado de S. Paulo (SP) 24/2/2008