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O que fazer com a revolução

 

Quatro de novembro de 1930 - O Brasil ganhara um novo governo, fruto de um movimento revolucionário não definido, mas atuante. As diferentes facções que chegaram ao poder ameaçavam engolfar o país numa anarquia institucionalizada, apesar de existir um chefe ostensivo, dono até de um poder que, no papel, era soberano.

Apesar da vitória tão facilmente conquistada, havia inquietações. Até quando duraria aquilo? Até quando a instabilidade revolucionária se manteria no tênue arame do picadeiro nacional? Como conseguiria aquele político gaúcho, herdeiro de uma tradição provincianamente caudilhesca e pragmaticamente paternalista, dominar os acontecimentos e encaminhá-los a uma nova ordem?

E os militares que se assanhavam diante do poder tão rápido e cobiçosamente conquistado? E a velha máquina política, emperrada nas engrenagens das oligarquias regionais? E a situação do café, em declarada bancarrota internacional?

Getulio faria uma jogada de grande habilidade política que paradoxalmente aumentaria extraordinariamente o seu poder pessoal, embora o cerceando: baixou a Lei Orgânica do Governo Provisório, um instrumento transitório, como o nome indica, mas cuja finalidade era a de autolimitar o seu próprio poder. Aos que estranharam aquela automutilação, ele explicou:
- Faço isso não tanto por mim, porque sei limitar-me e sei até onde devo chegar. Mas é também por causa deles.

Era uma nova referência aos tenentes, que dia a dia organizavam-se para tomar conta do governo. Pretendiam inicialmente tutelar o chefe civil, para, mais tarde, depô-lo sob qualquer pretexto. Entenda-se por tenente não apenas os militares de carreira, mas os numerosos civis que, na barafunda dos últimos dias, vestiram farda por conta própria e por própria conta grudaram nas mangas as divisas e emblemas que desejaram ou conseguiram comprar na Casa Matias e na A Escolar.

Não havia uma centralização de informações e de formações, o Brasil dividia-se em sesmarias, em capitanias estanques. Luis Vergara, que acompanhara Getulio de Porto Alegre ao Catete, na qualidade de seu secretário particular, anotou em suas recordações:
"Não havia uma linha ideológica orientadora que oferecesse um denominador comum à atuação dos lideres revolucionários. Os elementos que haviam liderado a revolução eram numerosos e heterogêneos. A maioria só desejava colaborar no sentido construtivo, mas a exaltação de ânimos e o entrechoque de opiniões podiam provocar confusões. E, aos bem intencionados, juntavam-se os afoitos."

Com outras palavras, era a mesma análise que o tenente Agildo Barata fizera, algum tempo antes. As vertentes revolucionárias começaram a se separar, a seguir um destino próprio e conflituoso. Mais que um aviso, era um sintoma.

Um amigo estranhou que o novo governante, assoberbado com a tarefa de construir alguma coisa no meio do caos administrativo e econômico -pairando, sobretudo a pesada herança deixada pelo crack do café-, perdesse tanto tempo ouvindo e atendendo gente tão disparatada, cheia de conflitos mesquinhos e pessoais.

- Os assuntos não faltam -explicou-se Getulio- eles me trazem sugestões, discutem medidas. Eu escuto atentamente, demonstrando interessar-me, mas o que mais me interessa realmente é conhecê-los melhor para saber como tratá-los.

Ele conhecia aquela passagem da vida de são Francisco de Sales, cujo sucesso no confessionário causava espanto e ciúmes no meio dos padres. Perguntaram ao santo qual o segredo de tanto êxito, e Francisco de Sales respondeu modestamente:
- Eu sei ouvir.

Por artes e artimanhas semelhantes -alguns começavam a acusá-lo de governar cinicamente- ele neutralizava as correntes que se chocavam, erguendo-se cada vez mais forte e cada vez mais necessário ao equilíbrio de todos os interesses em jogo. Possuía, em alto grau, duas qualidades que, embora modestas na escala das virtudes, eram as mais importantes para a ocasião: a paciência e a sua coirmã, a prudência. Desde aquela época, sabia que um dia deixaria a vida.

Folha de São Paulo, 15/4/2011