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O que diria Maquiavel?

 

Após a catástrofe dos plebiscitos de França e Holanda, os estrategistas da União Européia poderiam perguntar-se da indagação que, retrospectivamente, Maquiavel lhes faria. Por que a insistência na consulta popular, para levar adiante a Carta, e não a simples ratificação pelos Parlamentos nacionais? Não foi outra a solução que já deu pelo “sim” em todos os países que a acolheram, como Alemanha, Itália e Bélgica. Não estava na perspectiva do grande avanço da conquista da Carta o desacerto de agora entre a sensibilidade dos governos e a retranca de uma opinião pública ainda mal preparada para a modernidade democrática que representa o apelo crescente aos plebiscitos.


O sucesso da moeda comum e o disparo do euro amassando o dólar autorizavam um sentimento generalizado de euforia e a certeza de que o apoio à Constituição seria fato consumado, assumindo a Europa o desempenho tranqüilo de segundo ator mundial. A sensação temporã da ameaça do “não” colhia em clima de despreparo e de pânico a França de Chirac e, em reação em cadeia, o governo holandês, já sem possibilidade de reordenarem-se as cartas e os trunfos do jogo.


Não há, talvez, maior inépcia sobre a qual Maquiavel pudesse requintar sua crueldade crítica que a desta subavaliação, por mais de um trimestre, da faca de dois gumes do plebiscito e das chances de pôr abaixo o maior trunfo político francês do pós-guerra, trabalhado em conjunto com a Alemanha, na mudança definitiva do peso europeu no panorama político. Embalde o toque de reunir para a resistência recorreria ao palanque de lideranças como as de Schroeder ou Zapatero, frente a um voto ainda basicamente paroquial desta França de fundo.


O drama maior da catástrofe de 20 de maio só comprova o quanto a busca do novo modelo político e econômico continental é, legitimamente, ainda tarefa dos poderes. E seria mínima a reação que se teria manifestado à aprovação, da Carta, pela Assembléia francesa, tal como o fizeram o Parlamento de Berlim ou de Roma. O pito de Maquiavel nos recordaria de que as catástrofes políticas não nascem, via de regra, do confronto em bruto de opções dramáticas de fundo, mas do descuido operacional, ou da possível arrogância cívica, em que se presume identidade sempre entre deputados e opinião pública. Ou, no próprio jogo das oposições, esses equívocos nascem da mirada com os ganhos de longo prazo - como o da associação do socialismo com a grande Europa - comprometidos pelo imediatismo da política interna francesa. A defesa do “não” no plebiscito, a partir de um Fabius, confrontou a longa tradição oposta, da legenda de Mitterrand aos recados de Jospin ou Xavier de Hollande. Perderam as esquerdas o ímpeto da frente comum, com Zapatero e Schroeder, para buscar alternativa à estabilidade do globo, segundo o Salão Oval.


Neste processo da “grande Europa”, o que não avança de logo retroage, repetiria o autor do “Príncipe”. Não cai apenas, e pela primeira vez, o euro diante do dólar. Aí está a inquietantíssima manifestação da Itália, a pedir a marcha a ré financeira e a volta da lira. Seria só de maneira prospectiva, e dentro da Europa, que um projeto de mudança de modelo, como propagam as esquerdas, pode prosperar. Estão avante, e não numa defesa paroquial, as garantias aos direitos sociais, vindo da grande tradição dos sindicatos.


A Europa que ora entra em pane é a da inovação do plano social cívico e político, ao lado da luta contra o status quo dos mercados, como bem lembrou Habermas. Do avanço do estatuto cidadão por sobre o da soberania; dos direitos humanos frente ao do Estado e sua proclamada segurança. É também o de reforço do Tribunal de Haia contra genocídios, discriminações sociais, atentados ecológicos, violência contra a cultura da paz, sufocada pelo 11 de Setembro, cruzada antiterrorista sem fim e advento da civilização do medo. Da mesma forma, é só dentro das garantias do emprego em bases continentais que se controlará o pânico expresso pelo “não” às hipotéticas avalanches de braços do Leste da Europa, desalojando uma força de trabalho que, na verdade, só terá no grande e novo mercado as suas condições de efetivo e sólido dinamismo.


Os vai-e-vens intermináveis que se debruçam sobre o horror do “não” do 20 de maio ouvirão de Maquiavel que a manobra malfeita dos governantes não se remenda: supera-se, de um só golpe, pelo rasgar imaginativo de novos horizontes que miniaturizem a desdita. Há que recuperar a diferença qualitativa de fatura histórica que guardava o “sim” como força continental. E o combalido governo Chirac já o quer simbolizar (no retorno à iniciativa larga) pela escolha de seu novo primeiro-ministro, Dominique Villepin. Foi quem exprimiu a resolução mais clara, de uma França falando pela autonomia européia, como representação então pela política externa, barrando a proposta de internacionalização da guerra contra o Iraque. Ouvimos, então, a voz de quem hoje está à testa do governo. E exprime a predominância do país da Revolução sobre o dos paroquialismos teimosos, a não se mutilar, do peso da França, a grandeza da Europa nascente.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 09/07/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 09/07/2005