Agradam-me as memórias híbridas de Ubiratan D’Ambrósio. Não havendo narrador onisciente ou, no caso das memórias, editor/revisor, inclinado à ficção da matéria rediviva, despontam várias formas de entrar e sair. Um tesouro de testemunhos, e felizes redundâncias, como um discurso musical, quando o mesmo episódio é revisitado por diversos ângulos. Estas memórias ostentam uma saudável dispersão metódica, disjecta membra, mas apenas de forma aparente. Caberá ao leitor a deliciosa tarefa de ligar os fios narrativos, que acercam a matemática no Mali e no Brasil, as atividades docentes, as não poucas missões em organismos internacionais e nas escolas mais vulneráveis. E sobretudo a defesa de novas epistemologias, enucleadas no viés transcultural e no recorte transdisciplinar, que formam a digital de Ubiratan.
Emociona a evocação do saudoso romeno Salomon Marcus, nosso amigo comum, professor que transitou vida afora entre a poesia e a matemática, discípulo, como foi, do grande poeta e matemático Ion Barbu. Não são dois mundos, o das ciências exatas (depois de Gödel temos de mudar o tom) e o das ciências humanas. Nada além do mundo cultural, desde um generoso senso de unidade. Esse é também o espírito sensível de Ubiratan.
Tenho uma dívida com ele, por haver apaziguado minha relação, outrora nada simples, com as matemáticas. Voltei para essa casa, de números e padrões, como o filho pródigo, através de seus livros, mediante suas palavras audazes.
A etnomatemática é, sem sombra de dúvidas, um divisor de águas no campo dos saberes, que tangencia a hermenêutica e a história da matemática, rasgando novas fronteiras. E me levou-me a pensar, de modo mais estruturado, em uma poética da matemática. Como se o fio de Novalis não se houvesse perdido, assim como a lição de Leonardo, que vibra além das disciplinas e não se fecha em dimensões burocráticas.
Ubiratan me conquistou pelo seu juízo severo do ensino da matemática, segundo um cardápio de sugestões fascinante.
Mas é a proposta de uma cultura da paz que se afirma, cultura, onde seguimos todos implicados, nas escolas da periferia e do sistema prisional. Ubiratan acertou em cheio. O ensino da matemática traduz uma parte do ideal possível de uma paz perpétua, ou de uma ética em trânsito que sonha com uma parcela razoável, embora luminosa, da paz.