A aula sobre a narrativa proustiana transcorria normalmente via Googlemeet. A sala virtual cheia. Faltavam a algazarra dos alunos nos corredores da Faculdade de Letras, a coxinha e o pastel gordurosos engolidos às pressas no intervalo entre uma aula e outra, o papo politizado com os colegas e as discussões culturais e educacionais no cafezinho. E, claro, o perfume da grama e das árvores floridas do Campus da UFRJ no Fundão. Saudades. O convidado daquela aula, conceituado professor emérito de uma universidade canadense, era o centro das atenções. Eu falava do Barthes e da impossibilidade de fazer coincidir uma ordem pluridimensional, como o real, e uma ordem unidimensional, como a linguagem. Logo a surpresa.
O professor, cuja apresentação eu já fizera, pede a palavra chorando. Soluçando, convulso. De origem portuguesa, pôs-se a explicar, num português com sotaque francês, ter sido abandonado recentemente por uma japonesa, sua grande paixão. Até essa altura eu pensava se tratar de uma astúcia didática para entrar no tema da aula. Professora de Línguas românicas em Tóquio, conheceram-se pelas redes sociais mas nunca se encontraram fisicamente. Graças a esse amor ele voltara a escrever artigos científicos, a estudar, a elaborar edições críticas de grande obras mundiais, enfim, a reviver (palavras dele).
E agora, exatamente na véspera do nosso Curso, a professora escreveu lhe informando ter uma nova paixão. Uma jovenzinha americana o substituía. Ao pronunciar jovenzinha americana o professor se pôs a gritar, a urrar, de pé, num pranto alvoroçado, espasmódico. Um aluno gritou " ele vai ter um treco". Outro disse que ele se mostrara homofóbico, isso sim, não aceitou as duas juntinhas.
Deu para perceber que o convidado canadense só se arrumara para a aula on-line com uma camisa, o pijama listado, embaixo, ele deixara. Um segundo depois o seu vídeo sumiu de repente. Fiquei preocupado.
Tentei manter a calma e a aula, falei do inconsciente do texto, que era importante trabalhar a literatura a montante e a jusante , coisas do tipo. Abordei as queimadas no Pantanal e outras generalidades para ver se retomava o leme. Também a visita do Secretário americano a Rondônia, as eleições no Brasil em novembro, por aí.
Mas o tema da aula passou a ser o amor. As diferenças entre o amor de Iracema, de Capitu, da Pagu e da japonesa. E do professor. Se no Romantismo o amor redimia, no Realismo doía, no Modernismo instruía, no amor virtual destruía. A gente sempre aprende com os alunos. O canadense nunca tinha visto, tocado, cheir ado, ouvido, sentido a sua amada. Como se deixar invadir assim então pelo sentimento amoroso? Talvez isso seja a literatura, não? Foi a observação de uma aluna de costume sempre tão calada. Como fiquei muito tenso com toda a história, encerrei a aula virtual um pouco mais cedo e fui à cozinha tomar Maracugina.