Aliados do governo derrotado seguem reclamando e assustando os vencedores com ameaças de golpes e viradas políticas
Há um tempo, logo que tomei posse na cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras (ABL), sucedendo ao grande Nelson Pereira dos Santos, tendo o poeta Castro Alves como patrono e como precursores o romancista Valentim Magalhães e o ensaísta Euclides da Cunha, iludi-me com essas aparentes homenagens. Considerei-me um brasileiro de sorte que ganhara esses gênios como padrinhos de um inevitável sucesso particular. Hoje sei que esse “sucesso particular” era apenas uma hipótese remota, nunca inevitável.
Nem sempre são celebrações eufóricas que festejam uma data ou um acontecimento importante. Às vezes são lágrimas e pesares que nos fazem lembrá-los, é a tristeza do fato que nos lembra sua data, a lembrança da dor sendo tão ou mais forte que a lembrança do clima em que ele floresceu. Não foi à toa que minha geração de então jovens cineastas brasileiros, tendo descoberto o romantismo e o gosto de liberdade do cinema europeu dos anos 1950 e 60, se apaixonou por alguns de seus exemplos mais significativos.
Não foi à toa que fomos um raro país a curtir o filme de Luchino Visconti “O Gatopardo”. Nunca, em nenhum outro lugar do planeta, se é ou se foi tão fiel ao mote de um lorde siciliano, herói daquele filme: mudar para não ter que mudar.
Giuseppe Tomasi di Lampedusa foi o escritor italiano que nos deixou o romance “Il Gattopardo”, um afresco sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento, na virada do século XIX para o XX. Seu livro e o filme dele adaptado tinham o mesmo título que o tradutor brasileiro encontrou para identificá-lo, “O Gatopardo”. Mas a tradução correta em português seria “O Leopardo”, preterida pela sonoridade italiana que o tornou célebre no Brasil. Com essa tradução equivocada, “Il Gattopardo” ou “O Gatopardo”, se tornou um mito literário e cinematográfico do que foi a política daqueles anos no Brasil. Mudar para não ter que mudar.
Vivemos novamente essa angústia da mudança. O governo derrotado parece não se importar muito com as mudanças, embora seja a principal vítima delas. Mas seus aliados, os que mais sofreram com o resultado das urnas, não parecem nada satisfeitos, seguem reclamando e (talvez) assustando os vencedores com ameaças de golpes e viradas políticas.
Na verdade o que nos está salvando das ameaças é apenas a vitória inaugural da seleção na Copa do Catar, o que direcionou a população para outro objetivo, o de torcer todo mundo junto pela invencibilidade e o sucesso nesse magno torneio esportivo, em que a cada quatro anos sucumbimos com o dever frustrado de ganhar mais uma estrela, a sexta de nosso sonhado hexacampeonato.
É impossível adivinhar o que irão sofrer essas vítimas da eventual crueldade do jogo. Depois de perder a presidência do Brasil por decisão da maioria democrática do país, os bolsonaristas terão que aceitar a instalação de um embate político em que eles já sairão perdendo pela diferença de dois milhões de votos. Dois milhões de eleitores, cidadãos que afirmarão durante os próximos quatro anos o que querem de uma eventual política nacional de governança democrática.
Pessoalmente, acho que o presidente eleito e seu vice têm se comportado de modo mais do que razoável, com a consciência de que representam um abençoado regime de transição que pretende recolocar o Brasil no rumo do afeto, na direção da esperança, seu papel político e cultural no chamado concerto das nações.