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O problema da cesárea

 

Segundo uma noção muito difundida, o nome cesárea ou cesariana estaria associado ao imperador Júlio César, nascido de um parto operatório. Pouco provável, pois, entre os antigos romanos, esse tipo de intervenção só se justificava pela morte da parturiente, e a mãe de Júlio César, Aurélia, viveu muitos anos após o nascimento do ilustre filho; mais provavelmente o termo vem do verbo latino caedere, cortar. Mas a lenda mostra como a cesárea apela à imaginação. Trata-se de uma operação antiga; no Ocidente ela é praticada regularmente pelo menos desde o século 16. Mas por causa da letalidade, era um procedimento de exceção.


Não mais, ao menos no Brasil. Entre nós, o número de cesáreas cresce constantemente. Recentemente foi divulgado que, em São Paulo, 56,7% dos partos são cirúrgicos, um aumento de 10 pontos percentuais na última década. A intervenção é mais frequente no Sudeste, no Centro-Oeste e no Sul do que no Nordeste e no Norte. Além disso, 84,5% dos partos cobertos por planos de saúde foram por cesárea (no SUS, a proporção é de 31%).


Esses fatos sugerem que existem aí fatores socioeconômicos e culturais, que se evidenciam quando se examina as motivações que levam médicos e parturientes a fazer tal opção. Para começar, há uma questão de conveniência: diferente do parto normal, a cesárea pode ser marcada com antecedência e é mais rápida, o que, para um profissional atarefado, pode ser um fator ponderável. No caso das mães, há o temor da dor; e, diz-se, em alguns casos a escolha de signos do zodíaco também pesa. Mais: como é um procedimento tecnológico, as pessoas tendem a achar que é melhor do que o parto natural, e isso por sua vez faz com o médico tenha receio de alguma queixa (“Meu filho nasceu com problemas porque o senhor não fez uma cesárea, vou entrar na Justiça”).


Mas é preciso lembrar também que existem indicações bem definidas para a cesárea. Por exemplo: quando o feto é muito grande, o que dificulta o parto normal, ou quando a placenta impede a saída do feto. Por tudo isso, a Organização Mundial de Saúde estabeleceu uma porcentagem padrão para as cesáreas: 15% dos partos. Obviamente, biologia não é matemática, e esse número serve apenas de orientação. Mas é uma meta exequível: no Reino Unido, a porcentagem de cesáreas realizadas está em torno de 10%, no Japão em torno de 8%. No Brasil a proporção de partos cirúrgicos está muito acima disso (em alguns municípios é quase 100%) e isso acaba configurando um problema de saúde pública.


A cesárea não é uma cirurgia isenta de riscos. Em primeiro lugar, como toda cirurgia, envolve hospitalização (e, portanto, a possibilidade de infecção hospitalar), envolve anestesia, envolve um pós-operatório às vezes doloroso, envolve a possibilidade de hemorragia e tem uma letalidade que, mesmo baixa, é bem maior que a do parto normal. A mãe não pode cuidar imediatamente do bebê, que, por sua vez, também pode enfrentar problemas.


Dá para diminuir a taxa de cesáreas? Dá. A percentagem mais alta de partos normais no SUS mostra isso. Foi o resultado de um esforço consciente e sistemático: por exemplo, aumentou-se em muito o valor pago pelo parto vaginal. E também o resultado da conscientização da população. As mulheres estão se dando conta das vantagens médicas e emocionais do parto normal, e existem movimentos organizados neste sentido, como é o caso da ONG Amigas do Parto. O Conselho Federal de Medicina também tem adotado ações nesse sentido.


Talvez leve algum tempo para que se possa reverter uma tendência que não é de hoje, mas certamente a racionalidade haverá de prevalecer. Aurélia, a mãe de Júlio César, sem dúvida assinaria em baixo.


Correio Braziliense, 18/5/2010