Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O presidente trabalha, sim

O presidente trabalha, sim

 

Embora confesse ignorância vergonhosa sobre o jogo do bicho, uma das raras instituições sérias e respeitadas do Brasil, acho que é somente nele que vale o que está escrito. Constituição, leis, decretos, portarias e assim por diante, como sabemos, só quando interessam a quem está mandando e quem está mandando nunca somos nós. A conversa de quem manda somos nós, por sinal, faz parte até da dita Constituição, mas é enfeite, porque soa bonito e serve para mostrar às visitas ou aos diversos inspetores exóticos a quem prestamos obsequiosa conta. Faz-se um esforçozinho aqui e ali para nos provar que vale o que está escrito e até noticiários de tevê nos informam sobre nossos direitos, todos devidamente escritos. Por exemplo, já que seremos assaltados mais cedo ou mais tarde, nos dizem as autoridades de insegurança pública que não portemos documentos, mas cópias deles, as quais serão aceitas como legítimas por todos. É só tentar embarcar no Galeão com uma cópia da carteira de identidade para ver que isso pode estar escrito, mas é brincadeirinha outra vez, pois lá só se aceita o original. Mas, claro, nenhum de vocês precisa ser lem-brado desse tipo de coisa. Já estamos acostumados, somos disciplinados serviçais dos governantes e de quem mais se julgue em posição de nos impingir o que fazer ou não fazer, conforme a sua, dele ou dela, veneta.


Talvez se trate de um problema de educação, porque pode ser devido a que, no fundo, ninguém aqui sabe ler, com a notável exceção do pessoal do jogo do bicho. E a grande maioria, na qual, antes que alguém antecipe a ob-servação, estou pronto a me incluir, tampouco sabe escrever. Escreve-se mal para quem lê mal (a não ser, naturalmente, a encantadora leitora ou o gentilíssimo leitor das presentes linhas) e o resultado não pode ser outro. Ironia, então, nem pensar. Fazendo ironia, a gente diz o contrário do que pensa, mas a incompetência tanto do emissor quanto do receptor faz com que este perceba tudo de forma literal, notadamente quando é despido de qualquer senso de humor, como acontece com muito mais gente do que se pensa. Além disso, deve-se ser tão explícito que às vezes, me pergunto se não deveria reivindicar a farta utilização de notas de pé de página em jornais.


Em vista disso, como manda o bom espírito cristão por que tento nortear-me, embora com notável inépcia, mea culpa . Tenho recebido reclamações por acharem que afirmei, faz alguns domingos, que o presidente da República não trabalha. De fato escrevi isso, mas pensei ter deixado claro que não queria dizer que ele não se ocupa, que não faz nada. Evidente que faz, não se comporta absolutamente como um preguiçoso. Na terça passada mesmo, esteve na Bahia para inaugurar uma farmácia popular, que, segundo li, foi o primeiro cumprimento de uma promessa de campanha. Estava trabalhando e chega a me admirar que ninguém tenha proposto um adicionalzinho de periculosidade, porque sair da China para a Bahia pode até dar choque anafilático. Estava trabalhando, inclusive dando uma forcinha (nada contra, voto no Rio e antes votava em Itaparica, estou até bastante por fora das eleições municipais de Salvador) para a candidatura petista à prefeitura de lá, acho normal. E, afinal, era também um grande momento para mostrar a alguém que o governo fez alguma coisa. Olhem aqui, inteirona, diante de vocês: uma farmácia. Estão pensando o quê, que o Ministério da Saúde é somente para abrigar ladroagens, sucatear hospitais e tornar moleza invadir-lhe as dependências num momento de investigação? A farmácia está aí e a Bahia nunca mais vai ser a mesma. Esperem só inaugurarem o Acarajé Participativo, mais uma ponta-de-lança do programa Fome Zero, em que cada brasileiro que morar ou estiver na Bahia terá direito ao vale-acarajé e acesso gratuito ao Disque Camarão Seco, no caso de a baiana do tabuleiro lhe sonegar esse importante complemento do popular quão nutritivo acepipe, de que tantos são hoje excluídos.


O problema - que admito ver à distância e posso estar cometendo um grande erro de avaliação, pelo qual, se for o caso, desde já peço desculpas e asseguro ao ministro Gushiken que não vou nunca falar mal do imperador do Japão - é o tipo de trabalho que faz o presidente. Não é culpa dele, é que ele, ainda moço, deixou de trabalhar no seu ofício inicial e passou a exercer outro, no qual revelou excepcionalíssimo talento. Comandou, com eficácia, bravura e inteligência, movimentos operários. Fundou um partido de enorme importância em nossa História. Conseguiu encarnar as esperanças de milhões e, finalmente, se elegeu presidente da República.


Mas mudar de trabalho outra vez, depois de tantos anos, mesmo relati-vamente jovem como ele, é difícil, talvez impossível. Ele viaja, faz improvi-sos, estabelece contatos, exorta, procura inspirar (antes conseguia), mas não preside, a não ser reuniões, coisa em que também tem uma prática imbatível. O Ministério, por exemplo, que se compõe, se não me engano, de 35 membros, é uma assembléia onde, se cada um falar dez minutos, sem resposta, a “discussão” levará seis horas. Tenho até a impressão de que é meio difícil reunir o Ministério todo e de que vez em quando, até porque todo mundo é barbudinho, ele mesmo deve perguntar a alguém ao lado quem é aquele ali.


Agora, sentar à mesa da Presidência, ler relatórios, escarafunchar dados, pedir resultados específicos, fiscalizar, cobrar individualmente, mandar individualmente, isso - repito que visto daqui - ele não sabe e não gosta de fazer. Liderar a massa é com ele, tourear questão de ordem (expressão usada por todo reunionista para justificar qualquer interferência) também é. Mas governar, administrar, gerir, fazer o trabalho doméstico, por assim dizer, não é a dele. Pronto, espero que tudo tenha ficado esclarecido. Ele trabalha muito, naquilo que sabe e gosta de fazer. E, de lambuja, até inaugurou uma farmácia.


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 13/06/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ), 13/06/2004